824 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 142
melhorar as condições de vida do povo português, apesar (e nunca será demais repeti-lo) do imenso caminho já percorrido na prodigiosa obra da revolução. Admite-se perfeitamente que a economia de um país não possa suportar o quantitativo de forças que a técnica militar considere necessário, tendo em conta os ambientes político e geográfico que enquadram os territórios a defender. É função da política suprir esta deficiência, jogando com os factores comuns a outras potências igualmente interessadas nos possíveis teatros de guerra, compensando assim por acordos e auxílios exteriores o que não pode garantir por si mesma. Incorre, porém, em gravíssima responsabilidade quem julgar que se pode simplificar a orgânica das forças e reduzir as suas dotações. Onde se procura uma economia pratica-se um desperdício, porque, em vez de se forjar uma máquina apta para a luta, cria-se apenas uma outra que só parece sê-lo em tempo de paz, batida de antemão ao menor sopro da batalha.
Tem, portanto, de admitir-se na defesa um compromisso entre o que a economia pode suportar e o quantitativo de forças a constituir, mas nunca será de considerar que esse compromisso possa existir em prejuízo do valor real para a guerra que as forças tidas como mínimas devem representar.
Isto sob o ponto de vista teórico, abstracto. Como disse, as contas não facultam elementos com que se possa abordar problema de tal delicadeza e gravidade, apenas suscitado pela disparidade notada.
Há cerca de vinte anos desenvolveu o País uma real acção de potenciação das suas forças armadas, despendendo, em particular, importantes verbas na substituição de velhos armamentos e na aquisição de outros ao tempo inexistentes. A par deste esforço financeiro uma diferente estrutura foi criada com base numa série de documentos notáveis, constituindo toda uma orgânica nova.
Acredito firmemente que sem esse arranque em boa hora levado a efeito não teria sido possível tomarem--se os dispositivos adequados que a defesa da soberania impôs no decorrer do último conflito. Penso que essa acção foi uma das pedras basilares de garantia da neutralidade, em concorrência com a genial direcção da política exterior. Julgo que vivemos hoje um período que implica idêntica viragem na nossa história militar. Para novos objectivos, novas fórmulas.
A dúvida que o jogo dos números em mim fez nascer terá uma razão de ser, um fundo de verdade. Porém, para que se possa concretizá-la em condições de tal clareza que o País compreenda novas necessidades e aã aceite creio ser indispensável que se faça primeiro uma grande revisão, eliminando o que passou a ser supérfluo ou foi ultrapassado, contraindo u que em órgãos, comandos e serviços a interdependência cada vez maior das três armas na batalha moderna permitir, para enfim se poder dotar, sem riqueza mas sem faltas, o que for considerado como estritamente essencial.
Sr. Presidente: há um argumento que contraria a dúvida que pus e que não quero fugir a enfrentar: o da existência de saldos relativamente importantes nas verbas com que foram dotados os organismos da defesa. Se compararmos as dotações orçamentais e as verbas despendidas nos corpos de oficiais do quadro permanente dos diversos departamentos militares, verificamos saldos com as seguintes ordens de grandeza:
Percentagens
No Exército........... 10
Na Marinha ........... 7,5
Nas forças aéreas..... 29
Estes saldos em verbas destinadas ao pagamento dos oficiais dos quadros aprovados por lei traduzem-se, como não podia deixar de ser, em deficiências no preenchimento desses quadros. A situação é, porém, bastante pior do que a que os números apresentam, em especial se nos reportarmos aos oficiais combatentes. De facto, nas forças aéreas a carência de oficiais pilotos do quadro permanente é de cerca de 35 por cento, embora esse quadro seja tão exíguo que nos próprios efectivos orgânicos de tempo de paz das unidades de caça, estabelecidos a um piloto por avião, se inclui estranhamente 34 por cento de pessoal do quadro de complemento. No Exército a situação afigura-se mesmo como calamitosa, subindo a muitas centenas as vagas existentes, o que o saldo não indica, por a deficiência ser em larga parte suprida mantendo nas fileiras oficiais de complemento.
Este estado de coisas há-de ter, como é lógico, uma razão e esta creio bem poder filiá-la na falta de condições de atracção da carreira das armas.
A carreira militar não é e um modo de vidas como outro qualquer, jutas o exercício duma função como nenhuma outra na sociedade ou no Estado. Certamente se vive dela, como têm de viver da sua actividade todos os que não criam directamente riqueza: mas o interesse, como princípio dominante, mas o espírito de lucro ou de enriquecimento indefinido que encontramos, e com legitimidade, nas profissões privadas, deve andar longe da função militar. Não se trata de ganhar a vida, mas de desempenhar altas missões sociais.
Esta definição da função militar, de limpidez e claridade singulares, proferiu-a o mais alto expoente do pensamento português contemporâneo e se as trouxe neste momento para aqui foi apenas para que o elevado conceito que encerra não se aparte do meu espírito nas considerações que vou fazer.
A carreira militar não é um modo de vida como qualquer outro, mas o exercício de uma função como nenhuma outra.
Implica a posse de altas virtudes: o sentimento do dever, o amor da responsabilidade, a coragem moral, o respeito pela verdade, a necessidade de justiça, o desejo de servir, a fé nos altos princípios que informam a vida. Não é militar quem apenas veste uma farda, mas o que sente a necessidade permanente de a honrar.
A carreira militar é diferente de qualquer outra: a vida é mais intensamente vivida, mais esgotante. Não tem horas: o serviço pode ocupar as vinte e quatro horas do dia. Não é estável: exerce-se onde é preciso servir. Não é cómoda: é permanente movimento, toda acção, sacrifício, arrojo.
O oficial é um condutor de homens, um chefe, desde os mais baixos postos. Exige-se que tenha o raciocínio claro e a decisão rápida; capacidade na concepção e firmeza ao realizar ; que saiba definir um rumo e tenha perseverança e energia para o seguir; que seja o primeiro a enfrentar a dificuldade e o último a beneficiar do repouso.
Estas virtudes e qualidades não são exclusivo do militar; mas se nas outras actividades se pode prescindir delas, em maior ou menor grau, porque não as condicionam, são atributos essenciais da função militar.
Mas o oficial tem de viver da sua actividade, porque não cria directamente riqueza. Viver como? Sem ostentação, sem luxo, sem gastos supérfluos, mas com o dignidade que a alta missão social que exerce lhe impõe.