DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 50 1038
Tem o Governo buscado valorizar cada vez mais a colaboração da Câmara Corporativa na publicação dos decretos-leis. A Câmara, que durante a sua existência se revelou uma das mais úteis instituições constitucionais, continuará a ser o apoio consultivo da Assembleia Nacional e do Governo, permitindo que se exprimam autorizadamente os interesses nela representados.
A Constituição assegura aos tribunais as garantias de justiça independente e imparcial. O estatuto dos juizes é da competência exclusiva da Assembleia Nacional. Podemos falar com orgulho da magistratura portuguesa; é com respeito que deveremos considerar o exercício da função judicial no nosso pais. Os princípios que a regem não ficam letra morta nas leis: são normas há muito praticadas, arreigadamente introduzidas na ética, e que nem os governantes se atreveriam a restringir nem os magistrados tolerariam que fossem violadas.
O Governo limita-se a propor neste capítulo uma alteração tendente a tornar mais eficaz a fiscalização da constitucionalidade das leis, prevendo-se que a competência para a decisão dos incidentes processuais suscitados nessa matéria possa ser atribuída a um só tribunal supremo, de modo a evitar a dispersão da jurisprudência e permitindo até conferir força obrigatória geral aos julgamentos proferidos.
Mantida a estrutura fundamental dos poderes do Estado, examinou-se depois cautelosamente tudo quanto respeita aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos portugueses.
Uma questão prévia tínhamos aqui a resolver: A da extensão doa direitos da cidadania portuguesa aos Brasileiros, em correspondência, por reciprocidade, com o disposto recentemente na Constituição do Brasil.
Os constituintes da nação irmã deram, com a inclusão na lei constitucional do preceito que equipara juridicamente os Portugueses aos Brasileiros, um passo largo e arrojado no caminho da criação de uma efectiva comunidade luso-brasileira.
Desde há muito os juristas dos dois países consideravam imperativo definir para os portugueses no Brasil e para os brasileiros em Portugal um estatuto que, nos primeiros estudos, foi designado de quase nacionalidade. O direito tem de reflectir as realidades, disciplinando-as, mas sem as violentar. Ora, a realidade é que, pela comunhão da língua, pêlos laços familiares, pela analogia dos costumes e hábitos, os nacionais de um dos países se não sentem estrangeiros no outro. E mais: em Portugal o sentimento popular e o consenso comum não reputam de estrangeiros os Brasileiros, assim como no Brasil os Portugueses se fundem no meio desde a chegada à terra, como se de nacionais se tratasse.
Foi, pois, com alvoroço que o Governo Português tomou conhecimento da iniciativa consagrada na Constituição do Brasil. E logo nos apressámos a entabular negociações para se concertarem condutas, a fim de que nos dois países não divergissem as leis reguladoras do novo estatuto.
A Constituição Portuguesa tinha de ser alterada para permitir a publicação da nossa lei interna ou o ajuste de qualquer acordo internacional sobre a matéria. Tendes agora em vossa mão a proposta. Não escondo que a sua aprovação, além de ser motivo de júbilo justificado para os dois países, me causará o maior prazer. Há trinta anos que defendo esta doutrina. Relembrei-a em acto soleníssimo celebrado no Rio de Janeiro, por ocasião da minha visita oficial, quando fui investido no grau de doutor honoris causa e no título de professor honorário da sua Universidade Federal. E a lembrança não foi em vão. Ouviram-na membros ilustres do Governo, juristas prestigiosos e autorizados, jornalistas eminentes - e porque a ideia correspondia a uma opinião já amadurecida e a um sentimento de há muito radicado, logo fez o seu caminho. Não seremos nós a embaraçá-lo!
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Quanto a declaração de direitos constantes do artigo 8.°, nela se encontram incluídas todas as garantias fundamentais de que depende, nas sociedades civilizadas de tipo ocidental europeu, o respeito da personalidade individual. As alterações a introduzir visam reforçar as garantias judiciárias dos arguidos, a regular mais estritamente a prisão preventiva e a consagrar em termos genéricos a faculdade de recorrer contenciosamente dos actos administrativos definitivos e executórios que os interessados consideram terem sido praticados com violação da lei.
É corrente falar-se, a propósito da acção do governo da minha presidência, em liberalização. Professor vai para quarenta anos de disciplinas de direito público, não se estranhará que tenha uma formação que pode ser considerada liberal. Mas todos quantos me conhecem ou tenham lido as minhas obras sabem qual o meu conceito de liberdade. Para o jurista, que sou, a liberdade individual não pode ser avaliada fora do meio social em que os cidadãos vivem e relativamente ao qual têm deveres imperiosos a respeitar e a cumprir. A liberdade não é o capricho, não é o reino do egoísmo fantasista de cada um, não é a licença do procedimento anárquico: é a faculdade que se reconhece às pessoas de obedecer às leis mais do que aos homens, o direito de só se ser obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa em consequência de lei geral, isto é, que preceitue em termos iguais para quantos se encontrem em iguais condições.
Não há, pois, antinomia entre a Uberdade e a lei: pelo contrário, não pode haver garantia da liberdade de cada um sem lei que paute o procedimento de todos, de modo a evitar os choques de interesses, de apetites, de cobiças, dos indivíduos entre si e a lesão da paz social e do interesse colectivo.
Essa harmonização de interesses e conveniências, de modo a manter cada qual na sua órbita e a permitir a normal conveniência na sociedade, fazendo prevalecer nela a justiça, é o que se chama a ordem.
A missão da autoridade na variedade dos seus órgãos e manifestações, seja o Poder que legisla, seja o Governo que executa, sejam os tribunais que julgam, seja a Administração que prevê, orienta e providencia, a missão da autoridade, dizia eu, é a de sustentar e conservar essa ordem, sem a qual os direitos individuais são precários e as liberdades não passam de platónicas ilusões.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Garantindo aos indivíduos meios eficazes de conter o Poder dentro da legalidade e de defender os seus direitos ameaçados ou ofendidos por actos ilegais, contribui-se para assegurar a ordem jurídica.
O desiderato de todos os governos ilegítimos é a manutenção do equilíbrio entre a liberdade dos indivíduos e a autoridade que lhes deve garantir a vida, a integridade pessoal, a propriedade, a prática religiosa, o bom nome e reputação e os outros direitos fundamentais da personalidade.
Em países onde arreigadas tradições de civismo dão aos indivíduos consciência dos limites dos seus direitos e da extensão dos seus deveres sociais talvez possam ser menos explícitas as leis e mais restrita a intervenção da autoridade.