2948 DIÁRIO DAS SESSÕES N.° 146
Sr. Presidente: Vai longe o tempo em que por consenso geral a medicina havia de fazer-se em grande parte à custa do esforço e, dizia-se, caridade dos médicos, como se tivéssemos culpa dos fracos rendimentos per capita dos indivíduos.
Nesta mesma Casa, e na antepenúltima legislatura, perguntei um dia que espécie de caridade era essa que permitia, negando-se a si própria, escravizar os médicos, alheando-se à compreensão de uma retribuição justa do trabalho, que é, ao mesmo tempo, o pão do próprio médico.
Mas passar-se da exploração de uma classe sob o pretexto de uma virtude, que só aos médicos era exigida, para outra sem respeito pela livre iniciativa e formação de riqueza particular, símbolos que agitamos como bandeira do nosso ideário político, é atropelo e distorção que me nego a admitir e que estou certo Marcelo Caetano não consentirá.
Estamos à vontade para falar, pois não sei de outra profissão que, na sobriedade de um exercício quase anónimo, com tanta dedicação, sacrifício, desinteresse e utilidade se entregue à causa pública.
Não creio, portanto, que o Governo, que tem perfeita consciência daquilo que a Nação nos deve, tenha pretendido com uma medida mais dura significar menos respeito e estima pela função da classe médica. No pendor desta afirmação insere-se, em abono do que pude averiguar, que nas providências tomadas em relação aos internos dos hospitais o Governo foi a isso levado pelo pedido de alguns directores de serviços, que, não podendo manter a disciplina, solicitaram, eles próprios, a intervenção da autoridade.
Acredito, isso sim, em que, restabelecida a normalidade, clarificado o ambiente, não deixará o Governo de satisfazer as reivindicações justas, mas havemos todos de convir que isso terá de decorrer em ambiente calmo e de inequívoca e franca compreensão.
O Governo tem demonstrado em todos os campos da administração a sua permeabilidade às reformas justas e candentes, e esta dos hospitais, e de uma maneira geral toda a problemática assistencial do País, não pode deixar de se situar nas suas constantes preocupações.
Mas haverá algum médico que não queira que a assistência, cada vez melhor, se estenda igualmente a todos, e não só a alguns privilegiados? Haverá algum médico que não deseja o melhor e mais amplo apetrechamento dos hospitais?
Estaremos egoìsticamente a defender apenas os nossos interesses materiais?
Será preciso, ao arrepio da própria ética do regime, como já se referiu, socializar a medicina para obter a democratização do consumo médico?
Afirmo categoricamente que não, e penso que o Estado social corporativo tem virtualidades suficientes para resolver integralmente este como outros problemas, o que é preciso é saber encontrar as soluções.
Para tudo na vida é necessário o estímulo; e se o espiritual é reconfortante e salutar, o material é imperioso e necessário — os médicos e enfermeiros também têm de prover à subsistência das suas casas e famílias.
Compreendo que possa ser aliciante para um jovem médico recém-formado entrar numa carreira que, sem sobressaltos de momento, lhe assegure um mínimo para viver, mas nós, os mais velhos, a quem a vida ensinou muito, temos obrigação de lhes dizer que isso é enganoso, pois a funcionarização do médico, refiro-me à sua ocupação integral, nunca dará compensação a uma profissão que não será nem mais nem menos do que as outras, mas que ninguém negará que é diferente, até por aquilo que todos exigem de nós — saber, carinho, dedicação, etc. —, e que temos o direito de procurar, embora correndo os riscos da concorrência, sair da cepa torta!
Nunca em país nenhum do Mundo, seja que Governo for poderá pagar a médicos, engenheiros, vendedores de automóveis ou de chocolates, arquitectos ou advogados, etc., o que eles realmente podem auferir quando praticam, ainda que em sadia concorrência, os seus ministérios.
Ora, isto é uma maneira de valorização na qual se não deve interferir, sob pena de negar-se a iniciativa privada ou coarctar o desenvolvimento da riqueza particular como estímulo do progresso.
Aceito devotadamente o propósito de se lavar a todos igualmente os cuidados adequados na doença; o que me é difícil é aceitar que só por via da socialização isso tenha viabilidade. Não está, portanto, em causa o objectivo mas, em discussão, duas concepções diferentes de resolver o problema, e eu digo como a grande maioria dos médicos — não, à socialização!
Nesta altura poder-se-iam, para exemplificar, levantar dúvidas sobre a exequibilidade de as classes menos abastadas poderem suportar os honorários exigidos pelos médicos e hospitais. Ora, não é preciso socializar para obviar a este inconveniente, bastará apenas pôr a funcionar o estado social corporativo, que, neste caso, se traduziria pela substituição do indivíduo por uma entidade colectiva quanto ao pagamento das despesas. Exemplificando: o funcionário vai a uma consulta ou a um hospital e quem paga, ao fim e ao cabo, é o Estado, como poderá ser uma caixa, uma companhia de seguros, um montepio, etc.
De forma análoga toda a assistência poderia prestar-se em regime de clínica particular e livre escolha do médico ou hospital. Assim, o que se evitava de gastos, duplicações, como melhoraria a própria assistência ao beneficiário, que se sentiria uma pessoa e não um número, como de um momento para o outro se acabariam com tantas queixas justificadas, porque se não foi bem atendido por este ou aquele médico ou porque se esperou tanto tempo pela consulta, etc. Cada um iria onde quisesse, e portanto a seu inteiro agrado, e só dele poderia queixar-se.
Desvios sempre possíveis?
Lá estaria a fiscalização a cargo de inspectores médicos.
E os postos da previdência para que serviriam então? Para atenderem a toda uma burocracia que se não pode dispensar e organização dos mais variados processos, esclarecimentos, senhas de consulta, etc., e até lá, bem vistas as coisas, poderiam ser feitas as consultas em regime de liberdade de escolha do médico inscrito nesse posto, que perceberia por unidade de trabalho executado devidamente tabelado e sempre fácil de ajustar em função do custo de vida.
Se porventura o beneficiário, quer da Previdência ou da Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado ou de qualquer outra organização, preferisse ir ao consultório, hospital ou casa de saúde, exibiria o seu respectivo «cartão de assistência», no qual figuraria a percentagem assegurada pela entidade responsável e o doente pagaria o resto conforme o seu escalão.
Para se evitarem exageros sempre possíveis lá estariam os acordos, aliás tão caros à nossa orgânica sindical, entre consultores e consulentes. Pois não marca o Estado um limite de preço aos funcionários? Pois da mesma forma poderia fazê-lo a Previdência.
E não foi pana definir uma política anti-socializante que a A. D. S. E. foi estabelecida da forma por que foi?!
Tudo o que se pudesse resolver em clínica ambulatória passar-se-ia em traços largos como disse. E nos casos de internamento?