O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

4608 DIÁRIO DAS SESSÕES N.° 227

Pois não é certo que toda a gente tem direito ao bom nome e reputação, à sua tranquilidade e sossego, à intimidade na vida privada?
Não sentámos que esses direitos estão juridicamente tutelados quando vemos os cidadãos nas barras dós tribunais a responder por danos morais?
E ao ouvir falar de interpretação extensiva e integração de lacunas ficamos com a ideia de que nada falta para legitimar a acção punitiva contra os indiscretos, os bisbilhoteiros e todos os intrometidos de má fé na vida íntima de cada um.
Mas em presença de um exame tão cuidado e extenso como aquele que nos é oferecido pelo órgão consultivo de apoio à Assembleia, que é a Câmara Corporativa, depois da reflexão imposta pelos deveres da comissão que regimentalmente havia de pronunciar-se, topa-se o verdadeiro alcance da preocupação do Governo e reconhece-se que a medida proposta ultrapassa largamente as limitações de um juízo indocumentado.
De resto, é por força de juízos indocumentados que muita gente reclama medidas; e medidas contra as medidas...
Reflectindo e meditando, num ambiente enriquecido por diferentes testemunhos, concluímos que esta proposta de lei serve a novidade das situações actuais, face ao negativismo que acompanha a revolução técnica, e acautela as situações que se adivinham na corrida para a conquista da irresponsabilidade no futuro.
Talvez por isso se fala já num avanço sobre as legislações estrangeiras.
Mas não desviemos demasiadamente a atenção para os instrumentos revolucionários, para os primores da "civilização industrial", que permitem a escuta, a devassa, a intromissão, a brutal agressão à tranquilidade de espírito - com consequências de ordem física - dos cidadãos.
Medida repressiva, a que está em causa, pena é que não seja bem acompanhada por outras medidas de carácter mais preventivo, alarmantemente a cair em desuso, por cedência a correntes materialistas, sobrepondo os interesses de grupo e classes aos direitos do homem.
Há quem receie não ser ou parecer moderno e abrace um progressismo pedagógico que faz esquecer nas escolas primárias e secundárias os ensaios de educação cívica e o sistemático combate à corrupção de costumes. Combate a fazer pela imagem, pela exaltação do exemplo, no culto da virtude e sublimação dos princípios.
Muito pertinentemente, o ilustre relator do parecer da Comissão de Política e Administração Geral e Local, naturalmente apoiado por todos os elementos da Comissão, acentua que foi o aparecimento de instrumentos de precisão capazes de vencer distâncias e 'isolamentos que veio pôr em crise a intimidade da vida privada, para concluir que o aperfeiçoamento de tais instrumentos facilmente incita à sua utilização, dentro da grande probabilidade de o infractor nunca ficar a descoberto.
Daí a previsão de medidas que condicionem a fabricação e comercialização dos engenhos.
Também o Governo, no preâmbulo da sua proposta, admite que não estamos em presença de um sistema completo, mas de um passo expressivo antes de uma iniciativa de maiores dimensões.
Retomo aqui a preocupação já expressa, para assinalar que é muito traste e preocupante verificar que é precisamente no aperfeiçoamento técnico do homem, num ambiente de evolução, dentro da maior expressão científica, que surge a impossibilidade de travar eficazmente a degradação moral que ameaça o mesmo homem no seu precioso reduto: a intimidade pessoal.
Pois será também no ambiente de indiferença com que se observa ou não, se se atenta num generalizado abafar dos valores morais, que ressalta o mérito da proposta, como tentativa de acudir à tranquilidade em perigo.
Já lá vai o tempo em que ficava a porta só no trinco! Agora, quanto mais exuberante é a vida social, maior é o número de ferrolhos a defender o homem, do homem.
Neste ponto sentiria a tentação de penetrar no recolhimento de certos doutrinadores, se não tivesse muito respeito pela intimidade da vida privada...
Fica então previsto mais um meio de interceptar a calúnia à nascença, em vez de a punir quando já deixa inevitáveis sequelas.
Não ficará mal explicitar que colher imagens, escutar, devassar, penetrar furtivamente na intimidade das pessoas, por malícia, sem justa causa, só pode servir para reproduzir amesquinhando, divulgar comprometendo, especular intimidando, ou fazer chantagem comerciando.
Todos sabemos quanto é perigosa a deturpação. Até o extracto de conversa, de boa ou má fé. Meia dúzia de palavras isoladas do texto essencial, prestam-se a milhentas incriminações. Todos temos experiência disso.
Por outro lado, a verdade em campo aberto passa livremente e pouco se repara nela. A mentira, colhida e propalada insidiosamente, bate a todas as portas e fixa-se em toda a parte.
No melhor pano cai a nódoa; é da sabedoria popular.
Ora, basta que o cidadão sinta a possibilidade de ser abusivamente observado ou escutado - direi mesmo expropriado da sua intimidade, servindo-me de uma imagem colhida no parecer da Câmara Corporativa -, basta isso, para viver com os nervos em franja e reclamar o direito de defesa.
Defesa que não encontrará, decisivamente, nesta lei, embora lhe possa dar uma preciosa ajuda.
Havemos de socorrer-nos de outras leis, se quisermos ir mais longe. As leis do Velho, do Novo, do inalterável Testamento.
As leis morais.
Não retiremos da Igreja o verdadeiro catecismo, que já vai sendo substituído por falaciosas interpretações; da escola, a simplicidade dos velhos conceitos, a emoldurar o culto da virtude, que já vão cedendo lugar ao culto do materialismo, mascarado de tecnicismo.
Não retiremos da sociedade a evidência, o peso da sanção moral, que deve transitar pela rua, pela escola, pelas repartições, pelos colóquios, pelos congressos, por todos os lugares cada vez mais afeitos à ideia de que o que importa é fugir do que nos incomoda, sem pensarmos que essa libertação nos faz fugir da nossa condição humana.