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14 DE MARÇO DE 1985 2297

Passou há dias a data de 3 de Março. Decorreram 6 séculos sobre a gloriosa data de 3 de Março de 1385. Como portugueses jamais o poderemos esquecer. Foi nesse dia que, em Coimbra, se iniciaram as Cortes onde João das Regras, pelo brilho da sua argumentação jurídica e pela clarividência do seu patriotismo (acompanhado, de resto, pelo povo português), fez consagrar D. João I como rei de direito, quando ele já o era de facto.
Desde 1383 que o povo vivia fortemente a situação do seu país. A crise fora uma realidade, a revolução estava em curso; a definitiva estabilidade em perspectiva.
1383-1385 - época áurea do nosso país. Toda a Europa dominada pela nobreza feudal.
Em Portugal uma nova classe surge e contra ela se volta todo o ódio dos que detêm o poder: os nobres.
É D. Henrique Manuel, Conde de Seia, que emite uma curiosa opinião sobre esses «estranhos garnachas» que afluíam das escolas de Bolonha e de Pisa:

Doutores! Perguntai-lhes o que anuncia o aspecto dos astros; interrogai-os sobre os mistérios da alquimia, como se transformam as pedras em metais; falai-lhes dos preceitos mais triviais da cetrária ou da montaria, das nobres artes de justas e torneios, de solaus e rimances, de padrões de linhagem! Ignoram tudo; tudo quanto é útil, difícil e belo na ciência humana. Contentam-se com a geringonça, não sei de que leis pagãs, com que pretendem governar cristãos.

E Faria de Sousa, não só se permite desdenhar do direito sustentado por João das Regras nas Cortes de Coimbra, ao qual chama «jurisprudência de cera amoldada aos seus rancores e interesses», como se permite afirmar, num acesso de cólera, que «antes mandaria seus filhos a aprender para ladrões do que para jurisconsultos». No fundo o ódio é contra a classe.
A aparição daqueles homens que tentam resolver os problemas reais pela palavra em vez das armas, que trocam o campo de batalha pela sala de debate, foi um choque tremendo no predomínio da cavalaria.
As questões que até ali se resolviam apenas pela violência, a rudes cutiladas de lança, passavam a ser resolvidas pela discussão, pela análise, pelo raciocínio. A força dava lugar à razão.
A nobreza não se conformava com esta situação que lhe diminuía os direitos, substituindo-os nos postos de direcção e de comando por burgueses e por letrados. Protestava fazendo a apologia do que ela chamava «as leis dos seus maiores, os bons usos da sua terra, o direito claro e simples do velho Portugal» contra «as subtilezas estranhas que só os tais doutores de Bolonha são capazes de entender».
Mas a situação era incontrolável.
João das Regras expunha as ideias, Álvaro Pais preconizava violências. João das Regras analisava e previa a necessidade de um plano governativo, uma nova organização da política do Estado, como conclusão lógica do movimento que se preparava, enquanto que Álvaro Pais preconizava a morte do Conde de Andeiro, o levantamento popular.
Duas mentalidades. Duas perspectivas que, por complementares, vieram a dar corpo à revolução.
João das Regras era o cérebro, o motor, enquanto que Álvaro Pais era o homem dos movimentos de rua, dado o seu ascendente sobre a burguesia e sobre o povo. Embora velho e doente, ele soube, na altura exacta, levar à «arraia miúda», aos mesteirais e aos burgueses, a palavra de ordem da revolução.
Mas esta revolução não era um simples movimento político para mudar um partido, uma dinastia ou até mesmo um regime; era antes uma remodelação radical, completa, de todo o edifício social; o nascer de uma «nova fase da nossa história», no dizer de Sérgio.
O povo esteve bem presente em todo o processo. Foi ele a mola real, a força do querer, o sentido da unidade, o testemunho da democracia.
À voz de Álvaro Pais, «a gente começou de se juntar a ele e era tanta que era estranha cousa de ver», no dizer do cronista que nos mostra a atitude do povo de Lisboa enchendo as ruas, atroando os ares com seus gritos, correndo, ameaçando, até que viu com seus próprios olhos que o Mestre de Avis estava bem vivo. Mas mesmo assim não se contentou e correu a matar o bispo castelhano D. Martinho que se encontrava na Sé. A revolução popular era um facto, havia que legalizá-la.
O Mestre de Avis era apenas um irmão bastardo de D. Fernando. A rainha era ainda legalmente a regente. Mas João das Regras ultrapassa o problema com todo o seu saber, a sua inteligência.
O Mestre de Avis convida o povo a reunir na Igreja de São Domingos e pergunta-lhe se quer que ele fique, não como superior mas como companheiro, dadas as necessidades do reino.
Foi este povo que «lhe pediu por mercê que ficasse, que os regesse e mandasse em todas as coisas. E se porventura o infante D. João viesse, e o reino lhe pertencesse por direito, o tomariam como rei, doutra guisa, não».
Assim o povo de Lisboa nomeia regedor e defensor do Reino, D. João, Mestre de Avis.
Mas João das Regras acha insuficiente e pede ao Mestre que se apresente nos paços da Câmara perante os vereadores, para que estes confirmem o veredicto do povo miúdo. Era prudente e necessário ouvir a voz ponderada da burguesia e obter formalmente a sanção do voto do terceiro estado. Face à hesitação demonstrada, é ainda o tanoeiro Afonso Eanes Penedo - homem do povo - que grita:

Ainda duvidais tomar o Mestre de Avis por regedor destes reinos, que tome o cargo de defender esta cidade e a nós outros todos? Parece que não sois verdadeiros portugueses [ ... ] Se dizeis que não, eu vos digo que em tudo isto eu não aventuro mais do que esta garganta e quem não for connosco pagá-lo-á pela sua antes que daqui parta.

A confirmação foi dada. O Governo foi constituído. A revolução propaga-se rapidamente a todo o País onde os ventres ao sol têm papel de grande importância e digno relevo: «E era maravilha ver que Deus dava tanto esforço aos pequenos como cobardia aos grandes», como dizia Fernão Lopes exprimindo a verdade dos acontecimentos.
Não deixa de ser curioso que o pai da prosa portuguesa, Fernão Lopes, chamado oficialmente a historiar os feitos da crise dinástica, se tenha identificado com as classes progressistas da revolução de 1383-1385, até porque recebia inspiração de um momento similar da história portuguesa - defesa dos direitos do povo e da burguesia, encabeçados pelo regente D. Pedro, con-