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2358 I SÉRIE -NÚMERO 56

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Pretendemos hoje evocar, nesta Câmara, uma das mais imperecíveis personalidades da cultura portuguesa: Aquilino Ribeiro. Enseja-o uma efeméride que propiciará, assim o desejamos, vastas comemorações: o centenário do seu nascimento. Reclama-o a estatura singularíssima da obra que nos legou, o percurso combativo e honrado de uma vida exausta na calcinação lenta dos velhos muros do obscurantismo.

De muitas viagens se impregnou o bornal deste nómada intrépido que levava a Pátria no sangue: do Carregal da Tabosa a Paris, da Soutosa a Lisboa, o seu verdadeiro itinerar foi o da humana avidez do devir, numa instante relação de comunhão e recusa com a realidade do mundo. As rudes vicissitudes como as horas fagueiras industriaram-lhe o engenho com os nutrientes da experiência, mas nunca deixou de vergastar as injustiças, batendo-se pela sua erradicação sem desfalecimentos. A amarga sedimentação de dissabores e tormentos, sendo legítima, não o dessorou nem o compeliu à inacção. Pelo contrário, dele se dirá, como Sá de Miranda, num verso tornado lugar-comum, aqui uma vez mais reabilitado, que era homem «de antes quebrar que torcer». Por isso, ao longo dos anos, militando em sucessivas gerações de rebeldes, pôde merecer o apreço dos camaradas de letras e dos democratas, dos leitores e amigos ou companheiros de acaso num exemplar gregarismo.

Desde cedo, Aquilino participou nas lutas das correntes progressistas do seu tempo. Tendo vindo residir para Lisboa em 1906, logo o ambiente republicano revolucionário o mobilizou. No período agitado que se seguiu, conheceu o drama, o cárcere, a fuga e o exílio. O País vibrava de ideias novas, multiplicavam-se os comícios e as actividades políticas de diverso matiz, desenvolvia-se, em Coimbra, uma greve estudantil de largas proporções, o desacreditado governo monárquico impunha a lei celerada enquanto se procedia ao encerramento do Parlamento; a fronteira da mudança surgia no horizonte do olhar e seria ultrapassada, em 5 de Outubro, com uma imensa saga de expectativas fraternas. É neste clima que ocorre, no quarto do escritor, um rebentamento que determinará a radical metamorfose do seu quotidiano.

Em Paris, frequentando a Sorbonne e os meios artísticos e literários, de cuja agudeza de espírito nos ficaram relatos admiráveis em Leal da Câmara, é aluno de alguns dos nomes nodais da Sociologia e do Pensamento francês da época: Durckheim, Lalande, Georges Dumas, Levy Bruhl, Léon Brunswick. Escreve e publica Jardim das Tormentas, assim iniciando um infatigável labor que, até à morte, lhe granjearia uma dimensão rara no conspecto global das nossas letras. Não cabe agora rastrear os sinais da vivência europeia na formação estética de Aquilino, ligado intimamente, segundo sempre confessou, ao percurso inovador e aos propósitos fundamentadores da escrita de Anatole France. Acentue-se, no entanto, o seu pendor permanente para o tratamento de temas nacionais, enraizados na terra e na circunstância portuguesas, sob a égide de uma visão arejadamente humanista, que se formou, sem dúvida, no confronto das teses e pesquisas do seu tempo. «A escola não se define pelo lugar geográfico», afirmou, num importante depoimento sobre a questão do regionalismo na sua obra. E a sua escola era, antes de tudo, a do compromisso resgatador com a comunidade dos explorados e oprimidos. Não produziu este beirão insubmisso literatice de trejeito mundano e desvairados delíquios. A sua prosa, rija e pessoalíssima, substanciou-se numa indescurada atenção ao real, no projecto, que o neo-realismo alargaria e aprofundaria, de diagnóstico da sociedade, dando voz aos carenciados, aos anónimos heróis populares, pícaros ou apologéticos, aos desvalidos que irradiam ímpetos altruístas e uma ânsia de liberdade maior do que o espaço que «a rosa do sol» cobre.
Ouçamos Aquilino:

Para que o escritor possa exercer o grande ministério que lhe cabe dentro de uma sociedade consciente e solidária, é indispensável que não traia o génio que lhe é próprio, a sua índole, a sua raça, seja livremente no meio o que uma antena é no éter, quando capta os sons infinitesimais que o sulcam;

ou, partindo de um outro ângulo de abordagem:

O escopo da literatura, bem entendido, não se confina no papel platónico, arte pela arte. Seja a noção motriz do progresso formulada assim ou assado: marcha geométrica frontal; eterno retorno; passagem do homogéneo ao diferenciado, a literatura é uma sorte de catalisador do facto social pelo que envolve de informação, impulsionamento, construtura.

E, finalmente, o que bem poderia escolher-se como uma das legendas, fecundas a ladear o perfil do romancista de Quando os Lobos Uivam:

O homem de letras é um interventor no mundo, não deixando por isso de fazer arte.
O romance naturalmente esposará a causa do povo, se assim se pode chamar a ocupar-se com as misérias e virtudes, os sonhos e as realidades, os anseios e as cruezas do magma humano no que oferece de mais rico e profundável.

Membro destacado do Grupo da Biblioteca Nacional assistiu à formação da Seara Nova, acompanhou os êxitos e fracassos de inúmeras iniciativas de intervenção ideológico-literária bem como a evolução dos movimentos culturais que agiratam, muitos deles fecundando, o solo da criatividade entre nós. Colaborou no Guia de Portugal, trabalho ímpar que congraçou, num plano arrojado de levantamento do nosso património, algumas figuras intelectuais de topo da 1.ª República. Tomou parte, como cidadão, nos eventos da pugna antifascista, o que lhe valeu perseguições, detenções, êxodos rocambolescos, o exílio, tormentos sem conta. Reassumiu sempre, com determinação, a sua oposição diligente à ditadura.
Entretanto, sucediam-se os títulos na sua extensa bibliografia: contos, novelas e romances; traduções, monografias; crónicas de guerra e da quotidianeidade social; excursos históricos, biográficos e crítico-literários; estudos e divulgações etnográficas; textos polémicos; literatura infantil. É uma compósita galeria de situações e seres que se nos oferece aos nossos olhos deslumbrados: pícaros ladinos, burlões, troca-tintas, jograis-aedos finisseculares, chamem-se eles Malhadinhas, Milfomes ou Manuel Louvadeus; personagens históricas, envoltas em grandezas e misérias; faunos da estirpe de Baltazar Maluco ou de João Bispo; camponeses, rendeiros, tra-