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2902 I SÉRIE-NÚMERO 71

O Governo mostrou toda a sua abertura; não veio para aqui com uma posição fixista e rígida: pôs-se à disposição da Assembleia para aceitar as alterações, dentro do respeito do quadro da filosofia que aqui acabou de definir, na intervenção da Sr.ª Secretária de Estado. E penso que o acerto desta questão não foge da filosofia que a Sr.ª Secretária de Estado da Administração Autárquica enunciou.

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado João Amaral.

O Sr. João Amaral (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo: A questão central que a regulamentação da tutela administrativa levanta é a de saber se são respeitados os limites constitucionais que postulam a autonomia do poder local num sistema de controle do cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos, ou, se ao contrário, se institui um sistema de ingerência discricionária nas competências próprias dos órgãos das autarquias e de orientação da sua actividade. De outra forma, a questão é saber se se trata de regulamentar o controle respeitando a autonomia, ou de instituir o arbítrio apontando para a centralização e governamentalização.
Na proposta de lei n. º 72/III, o Governo opta pelo arbítrio e pela discricionaridade contra o poder local e a autonomia.
Dois dispositivos fundamentais demonstram esta afirmação.
Em primeiro lugar, a proposta de lei pretende criar para as autarquias locais o dever da obediência às circulares e instruções genéricas da administração central, que é dizer direcções-gerais, comissões de coordenação regional, etc. [cf. artigo 9.º, n.º 3, alínea g)].
Em segundo lugar, a proposta visa permitir ao Governo a determinação de ordens concretas aos órgãos das autarquias nas matérias que constituem objecto das suas competências próprias [cf. artigo 5.º, alínea c)].
No seu conjunto a malha tecida pela proposta aponta para conferir ao Governo o poder de dar instruções e ordens aos órgãos autárquicos, promover discricionariamente inspecções, facultar o «julgamento» de órgãos ou eleitos, determinar administrativamente a dissolução ou a perda de mandato, constituir arbitrariamente comissões administrativas e, para cúmulo, impedir a seu bel-prazer certos eleitos de se recandidatarem.
No esquema proposto o Governo ficaria com o poder de seleccionar os seus alvos de entre eleitos e órgãos autárquicos, nomear obedientes comissões administrativas, constituídas ao arrepio da vontade do eleitorado e de, por sobre tudo isso, impedir eleitos autárquicos de se recandidatarem e exercerem as suas funções.
Este sistema não tem nada a ver com a autonomia do poder local, como nada tem a ver com o regime constitucional da tutela administrativa.
De facto, circulares, instruções e ordens concretas, são institutos que violam o artigo 243.º, n.º 1 da Constituição (na redacção que lhe foi dada depois da revisão constitucional), que diz explicitamente consistir a tutela unicamente na verificação «[...] do cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos [...]». O regime constitucional da tutela administrativa é exclusivamente o da tutela inspectiva, que se traduz no poder de fiscalizar os actos dos órgãos autárquicos com vista a averiguar se existe ou não ilegalidade; inconformado, o Governo quer mais, quer a tutela directiva com o poder de dirigir aos órgãos autárquicos instruções, designadamente sobre a forma de interpretarem e aplicarem a lei.
Assim se reporia em vigor encapotadamente o disposto no artigo 377.º do Código Administrativo de Marcelo Caetano, segundo o qual o Governo podia «transmitir aos corpos administrativos instruções destinadas a uniformizar a execução das leis e o funcionamento dos respectivos serviços».
Com duas diferenças. A primeira é que Marcelo Caetano, como legislador e alto responsável do regime fascista, adoptou a norma, mas enquanto como professor de Direito não podia deixar de considerar que, não havendo poder hierárquico do Governo sobre os corpos administrativos, o carácter de tais instruções lhes suscitava «dúvidas [...]». Agora, nem isso sucede, porque, como é sabido, o Ministro da Administração Interna não é professor de Direito ... A segunda diferença é que era da lógica do regime fascista transformar a tutela num poder de ingerência, direcção e arbítrio. A lógica do regime democrático-constitucional é a contrária: a de garantir o respeito pela autonomia do poder local, a de o dignificar, respeitar e fortalecer.
É precisamente isso que esta proposta de lei nega frontalmente!
Srs. Deputados, impõe-se desfazer um equívoco: o de que uma lei com este sentido se teria tornado necessária face à revisão constitucional.
O que se passou é coisa muito diferente. O artigo 243.º da Constituição, antes da sua revisão, não proibia formas de tutela que excedessem a inspectiva. A Lei n.º 79/77, aprovada nesta Assembleia por unanimidade, é que veio a consagrar que a tutela governamental sobre as autarquias se deveria cingir à verificação do cumprimento da lei. E é esse regime da Lei n.º 79/77 que se encontra hoje e ainda em vigor!
A alteração introduzida em sede de revisão constitucional não desconstitucionalizou as normas sobre tutela administrativa constantes da Lei n.º 79/77. Pelo contrário, e como afirma, por exemplo, António Vitorino (hoje Secretário de Estado), na anotação a esse artigo, a alteração do n.º l do artigo 243.º é que «constitucionaliza algo que já decorria da Lei n.º 79/77», ou seja, «a tutela sobre as autarquias é meramente inspectiva»!
Não podia ser de outra forma, para quem respeite e queira respeitar a autonomia do poder local.
E facto, e é bom sublinhá-lo claramente, que é do interesse da democracia e do poder local que a actuação dos órgãos autárquicos se conforme à legalidade democrática, que a sua gestão seja empenhada, transparente e rigorosa, e que conduza eficazmente, através do exercício das suas competências, à satisfação dos interesses das populações. O poder local fortalece-se e prestigia-se com uma gestão honesta, responsável, isenta e conforme à lei - e é por estes princípios que pautamos a nossa conduta, aqui e no exercício de cargos autárquicos.
Só que o poder local democrático afirma-se, como regra fundamental, no princípio da autonomia. As autarquias locais são «formas de administração autónoma territorial [...], dotadas de órgãos próprios, de atribuições específicas correspondentes a interesses próprios, não meras formas de administração indirecta ou