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138 I SÉRIE - NÚMERO 6

Rebentara a guerra civil em Espanha e os homens matavam-se por ideias sem se conhecerem. Atirava-se a um adversário como ao lobo ou ao javali. Espostejava-se gente como se fora gado. As fronteiras de Portugal e Espanha não eram ponto de confraternização, eram a barreira em que se entregavam homens para serem fuzilados.
A ditadura portuguesa, que se apregoava de cristã, concebe a ideia sinistra do Tarrafal. Foi no mesmo ano em que o monárquico Paiva Couceiro, já octogenário, sofre o último exílio em Espanha e nas Canárias. A Guerra Mundial ensaiava-se em Espanha; e os terríveis campos de concentração de Buchenwald e Auschwitz são ensaiados no Tarrafal.
Estranho cristianismo, estranha fraternidade, em que o homem atira ao homem como ao lobo e o persegue como a qualquer fera.
Milhares de cidadãos passaram pelo Tarrafal. Era um depósito de presos, entregues às feras dos polícias políticos. Lembrá-los para quê?
Mas não podemos esquecer que o Tarrafal existiu, que muitos lá morreram; outros lá padeceram às mãos dos homens-feras. É o ponto mais alto do ódio como sistema político. «Matai-os a todos, Deus reconhecerá os seus», dizia um bispo na guerra dos Alvigenses; é a morte arvorada em sistema de governo, o ódio tido como estalão de relações entre os homens.
Diante de todas as vítimas do Tarrafal, como o meu amigo Edmundo Pedro, o benjamim desse açougue, e do meu amigo António Marcelino Mesquita, há dias falecido, eu me sinto como diante dos milhares de vítimas dos autos-de-fé.
Foi a Inquisição em nossos dias. Foi o Santo Ofício a dizer-nos o que é o homem lobo do homem, o que é o homem transformado em fera.
Esses milhares de homens espezinhados dão-me uma estranha emoção, esperando que não mais volte ao nosso pais a tirania como sistema de governo. A pátria é a terra de todos os homens de boa vontade e a divergência de ideias enriquece uma sociedade. Só o desenvolvimento, a vivência democrática, constrói de facto a sociedade livre, amiga, que esperamos para todos.
Diante das vítimas do Tarrafal eu me curvo reverente e com emoção; sem o sacrifício desses resistentes não teria havido a aurora democrática do 25 de Abril, a cujo espírito devemos manter-nos fiéis. É a pátria que está em jogo. Só a fraternidade constrói.

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: - Também para uma declaração de voto, tem a palavra o Sr. Deputado José Carlos Vasconcelos.

O Sr. José Carlos Vasconcelos (PRD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: No longo e dramático calvário que foram 48 anos de fascismo, como no logo e duríssimo caminho que foram outros tantos anos de resistência do nosso povo, o Tarrafal foi e é um marco e um símbolo.
Um marco e um símbolo do extremo de negação total dos direitos do homem, de desumanidade e de crueldade a que chegou um regime criminoso, que, para cúmulo do despudor, se reclamava abusivamente dos valores cristãos e da civilização ocidental!...
Um marco e um símbolo da luta tenaz e desigual, e até do martirológio, daqueles que, com sacrifício de tudo, até da própria vida, nunca se vergaram perante a força e a ferocidade dos opressores.
Um marco e um símbolo, enfim, do que aconteceu - e tanto tempo! - à nossa pátria - e nunca, nunca mais pode voltar a acontecer, porque nunca mais Portugal poderá deixar de ser um país livre de homens livres.
Por tudo isto é importante que hoje se assinale aqui, no Parlamento, onde pulsa o sangue arterial do regime democrático, a negra efeméride do cinquentenário da «Colónia Penal de Cabo Verde» - como eufemisticamente a ditadura chamava ao campo de concentração e de morte do Tarrafal, como, mais tarde, o próprio ditador crismaria de «meia dúzia de safanões dados a tempo» as violências e torturas exercidas pela sinistra polícia política.
É importante, é fundamental, que não se esqueça. Pode-se (mas é tão difícil, se é que é possível!) perdoar, mas não se pode nem se deve esquecer. Para que seja feita inteira justiça, ao menos na memória viva de um povo, aos carrascos, que não podem ficar impunes, e às vítimas, que não podem ficar sepultadas no silêncio.
É importante, é fundamental, que não se esqueça - para que não se repita.
É importante, é fundamental, que o saibam, designadamente os mais novos, aqueles que já tiveram a grande felicidade (felizmente, por um lado, e infelizmente, por outro, sem sequer poder ter a consciência dela...) de viver a sua adolescência e a sua juventude num país sem PIDE, sem censura, sem guerra colonial; e que saibam também que só o 25 de Abril, culminando o longo combate do povo português pela sua liberdade, pôs termo, pôs definitivamente termo, a esta situação.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Só desde a sua criação - ou, melhor, desde a sua abertura -, em Outubro de 1936, até ao final de 1937, houve 200 cidadãos deportados para a «Colónia Penal de Cabo Verde»; comunistas, anarquistas, socialistas, antifascistas de procedências várias. Até 1954, muitas e muitas centenas de outros portugueses aí penariam, em alguns casos durante mais de quinze anos... Mais tarde, e até à Revolução de 1974, seria a vez dos nacionalistas angolanos, moçambicanos e outros que lutavam pela independência dos seus países.
O Tarrafal não foi só uma prisão, um campo de concentração: foi um lugar de tortura e de extermínio.
E nem sequer, para qualquer dos crimes cometidos, se pode buscar a eventual atenuante do desvairamento momentâneo, mesmo que injusto ou injustificado, provocado pela paixão ou pelo ódio políticos, que fizessem puxar subitamente o gatilho de uma pistola. Não: tudo foi premeditado, tudo foi preparado de forma segura, sábia, minuciosa, vagarosa. Por isso lhe chamavam «o campo da morte lenta». Da morte, da tortura, da humilhação, do sofrimento levados a um extremo e um requinte que nunca se julgaria possível, para mais maquinadas pelo regime de um ditador alegadamente pio e que falava da «brandura dos nossos costumes»...
O clima, a doença, especialmente a biliose, a falta de assistência, o mau tratamento, os trabalhos forçados, as torturas, com destaque para a terrível «frigideira» - eis alguns dos vários aspectos que, conjugados, constituíam o «inferno» do Tarrafal.
Desde o então secretário-geral do Partido Comunista, Bento Gonçalves, em 1942, até antifascistas praticamente desconhecidos, foram muitos os que aí pagaram