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I SÉRIE - NÚMERO 27

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vai ser lido um voto de pesar subscrito por deputados de todos os grupos parlamentares.
Foi lido. É o seguinte:

Voto de pesar

Joaquim Namorado foi uma personalidade singularíssima da cultura portuguesa do nosso tempo, uma grande figura moral e política. Animador de iniciativas e combatente pela liberdade, exerceu sobre sucessivas gerações uma influência determinante e rica. Afastado pela ditadura de funções na escola pública, viu-se compelido ao recurso a lições privadas de matemática para sobreviver. Mas o seu verdadeiro magistério era o do quotidiano convívio formativo, o da critica - em vez da louvaminha
dócil, o da irreverência e do inconformismo perante o mal-estar e as injustiças. Todos lhe devemos um pouco.
O 25 de Abril permitiu que a Universidade de Coimbra, através da Faculdade de Ciências e Tecnologia, o integrasse nos seus quadros docentes, reparando, de forma tardia e parcial, embora, uma enorme dívida. Recentemente, havia sido agraciado
com a Ordem da Liberdade e com outras distinções relevantes, sempre as acolhendo de modo que espelhassem um preito merecido destinado aos seus companheiros de luta pelos ideais da fraternidade e do humanismo.
Nome de topo do movimento neo-realista, dinamizador de revistas e publicações como a Vértice, a que deu o fruto de uma inteligência e de um esforço de mais de meio século, mordaz e terno, tolerante e incomplacente, o poeta de «Incomodidade» marcou, de maneira profunda, uma época convulsionada da nossa vida colectiva e um período fecundo da literatura do nosso país.
Morreu agora, na sua Coimbra quase natal, após
uma doença prolongada e uma coragem inexcedível.
A Assembleia da República, reunida, em sessão ordinária, no dia 6 de Janeiro de 1987, expressa, neste momento de luto, o seu pesar veemente pela morte de Joaquim Namorado, escritor e cidadão
exemplar.

Srs. Deputados, vamos votar.

Submetido à votação, foi aprovado por unanimidade.
Para uma declaração de voto, tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Mendes.
O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Tenho na bancada os livros de Joaquim Namorado. Neles perdura e vibra uma escrita que assumiu o tempo dos rudes desafios, da coragem e da integridade, do construir os dias da
liberdade. Também a estética de uma literatura irrigada pelas aspirações colectivas, em que o povo era destinador e destinatário, alheio a percursos mera mente lúdicos, ensejados para deleite de minorias bolorosas. E ainda o sarcasmo, a irreverência, o chiste de bom gosto, a solidariedade, a ternura contida ou emocionada.

Assim:

«O Douro é um rio de barcos onde remam os barqueiros suas desgraças, primeiro se afundam em terra as suas vidas que no rio se afundam as barcaças. [...] O rio Douro é um rio de sangue, por onde o sangue do meu povo corre.»

ou, de forma límpida e bela, em decalque de um desenho de Manuel Ribeiro de Paiva:

«Num mundo de maiorais, de feitores, de cães de guarda, ficou no pó das estradas a marca dos nossos passos continuando outros passos. O caminho é por aqui, dirá quem vier depois olhando estes sinais e disso estará tão certo que o que ainda é distante lhe será perto.»

Personalidade singularíssima, o grande poeta da «Incomodidade» marcou, de forma indelével, sucessivas gerações. Os que, no curso de meio século, contaram com o seu magistério, o seu companheirismo, a sua disponibilidade, foram e são testemunho da inteireza moral e política do cidadão que não poupou esforços no seu quotidiano de animador cultural. Organizou inúmeras e diversificadas iniciativas de combate ao regime opressor, na difusão da arte popular e da literatura insubmissa, na formação intelectual dos jovens.
Nome cimeiro do movimento neo-realista, em cuja estruturação prodigalizou energias, entusiasmo e criatividade, colaborou em jornais e publicações que se tornaram legenda, assegurou a permanente dinamização da revista «Vértice», à qual chamou muitos dos que se afirmam hoje referências indeclináveis do nosso acervo ficcional, poético ou ensaístico; prefaciou, com rigor e rara lucidez, obras de destacados autores, partilhando o seu itinerário sem o menor laivo de subserviência.
O seu trato, tantas vezes áspero, evidenciava uma funda sinceridade, um constante sentido de cooperação e ajuda, uma lealdade exemplar. Simples, empenhado, amando a vida no que ela tem de inovador e fecundo, apagou a obra pessoal em detrimento de um trabalho diário para benefício da comunidade cívica e das letras. Inédita está uma parte substancial e notável da sua produção, que urge editar na íntegra. Cabe-nos agora a responsabilidade de honrar-lhe a memória também através da divulgação cuidada do legado.
Ao cabo de uma existência que provou amargores e perseguições, o Portugal democrático integrou Joaquim Namorado na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, homenageou-o e condecorou-o, em várias manifestações reparadoras, decerto insuficientes e tardias mas irrecusavelmente justas. Porque a «Poesia» continua a ser «Necessária», porque o testemunho empunhado por quem evocamos segue, enriquecido, em nossas mãos, entendemos que a Câmara se nobilitou aprovando, por unanimidade, o voto de pesar apresentado. E o PCP conclui estes escassos e duros minutos dando, de novo e por fim, a voz ao camarada e ao amigo que (fisicamente) todos perdemos:

«A poesia é uma máquina de produzir entusiasmo e é preciso que os versos sejam verdadeiros.»

Aplausos do PCP, do PS, do PRD, do MDP/CDE e de alguns deputados do PSD.