2 DE NOVEMBRO DE 1989 261
iniciou, a nível dos órgãos de decisão nacionais, o debate directo sobre o caso específico da protecção da pessoa humana e da sua integridade física e intelectual no contexto dos progressos da biologia, da medicina e da bioquímica.
Para além dos problemas propostos pela inseminação artificial, pela fertilização in vitro, outros foram equacionados: assim, os dos ensaios em pessoas, sem finalidades terapêuticas imediatas, de novos medicamentos, os da correcção de deficiências genéticas no feto, os das transplantações de órgãos, os do tratamento compulsivo de certas doenças e os do prolongamento artificial da vida após a morte celebrai.
Recordo-me de uma frase que então escrevi e que, de alguma forma, fez carreira, no sentido de preservar, tanto quanto possível, a natureza natural da pessoa: esta não deveria estar condenada a nascer in vitro e a morrer in machina. Como todas as frases, ela não seria um compêndio, mas evidenciava um bem sentido propósito, sobre o qual, aliás, se estabeleceu, com uma ou outra particularidade de pormenor, um alargado consenso.
Compreender-se-á, assim, a constituição, no âmbito do Ministério da Justiça, em Abril de 1986, de uma comissão designada "Comissão para o Enquadramento Legislativo das Novas Tecnologias". Dela fizeram parte personalidades como os Profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, da Faculdade de Direito de Coimbra, o Prof. Luís Archer, os professores de medicina Amândio Tavares, Pratas Ferreira e Adelino Marques e outros qualificados técnicos.
Não se lhes "encomendou", ex professo, uma panóplia de leis, embora elas pudessem surgir ou vir a ser reformuladas. Pensou-se, determinantemente, no levantamento e na ordenação das questões que as novas tecnologias submetem à consciência do homem, na sua problematização e no desvendar de um mundo quase desconhecido, mesmo para os cientistas, ressalvadas, claro está, algumas excepções.
Desenvolveu-se o trabalho da Comissão ao longo de 14 árduos meses, e entre os anteprojectos legislativos que apresentou, já na ponta final do X Governo, destacarei, por ser o que agora maior pertinência assume, o que dizia respeito à criação de um centro nacional de bioética. Como então assinalei, não é frequente encontrar-se um grupo de especialistas, assoberbados por prementes ocupações profissionais, que possam ter afectado a uma tarefa disponivelmente aceite um tão grande empenho e uma tão evidente eficácia. E, ponto é recordar, exercendo-a com uma retribuição espaçada e quase simbólica, aliás sempre reticentemente aceite, quando não, pura e simplesmente, recusada.
Sr.ª Presidente, Srs. Deputados: A pessoa, por princípio, deve ser gerada e não produzida. A biologia referenciar-se-á pelo signo da verdade.
Para além de tudo o que se possa controverter em tema tão susceptível de diversificados pontos de vista, afigura-se que tais postulados serão de dar como assentes. Tem o Conselho da Europa repetidas vezes reafirmado o que releva da própria natureza humana. Assim, por exemplo, a Recomendação n.º 934 (1982), respeitante à engenharia genética e ao direito a um património genético que não possa ser artificialmente manipulado, a não ser, e em casos caracterizados, para fins terapêuticos.
Pondo de lado práticas inteiramente condenáveis - tal como ,o Conselho da Europa também as considera -, como as das mães de substituição ou úteros de aluguer,
que transformam a própria mãe numa coisa, desfigurando a sua natureza de pessoa, penso, num contributo que se situa já na perspectiva jurídica da questão, que a procriação artificial será apenas configurável em três situações: quando tenha uma finalidade terapêutica e não eugénica; quando tenha em conta (embora não exclusivamente, já que os atendíveis interesses dos pais também relevarão) o interesse da criança que irá nascer; quando seja voluntária, ou seja, quando feita com o consentimento da mulher e do homem que a protagonizam - e aqui vem à colação exactamente a utilização do sémen após a morte do dador, como foi referido pelo Sr. Deputado José Magalhães.
A partir destes pressupostos, que serão por certo conformes à generalidade das pessoas, seja qual for o seu pendor confessional ou a sua conexão ideológica, outros serão motivo de reflexão, não sendo, por certo, de desperdiçar o mais recente contributo da Igreja Católica, através da Congregação para a Doutrina da Fé, assumido em 1987, acerca da dignidade da procriação. Não será, por certo, o momento de reflectir sobre as posições .tomadas, algumas delas, na realidade, de ordem prevalentemente confessional.
Seja, porém, como for, o certo é que as actuações, todas as actuações, terão de ser referenciadas a critérios éticos, de significância tanto quanto possível plural, embora com fundamentos comuns, decorrentes da própria natureza humana.
Foi essa a ideia que, à semelhança do Comité Consultatif National d'Éthique pour lês sciences de la vie et de la santé, criado em França em 1983, fez prever, já em 1987, a criação do já referido conselho nacional de bioética, que agora, no projecto de lei do PS, é, talvez mais sugestivamente e usando uma terminologia propagada da francesa, designado por Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.
Será, de resto, de salientar que a experiência das comissões de ética data de meados dos anos 60. Mas, como recorda o Prof. Jean Bernard, presidente do Comité National francês, as primeiras a ser criadas tiveram em vista a resolução de problemas pontuais; uma questão concreta posta a uma equipa técnica era submetida, para o efeito, a uma comissão ad hoc. Aconteceu isso mesmo designadamente em Inglaterra, em França e nos Estados Unidos. Como refere Jean Bernard, neste último país as comissões de ética, em regra constituídas junto dos governadores dos Estados, passaram a dispor de um poder quase legislativo, elaborando normas regulamentares.
O Comité de Ética francês foi o primeiro que, com carácter nacional, não integrou apenas médicos e biólogos. A preocupação inicial era a de que a componente "não científica", na peculiar acepção do termo, equivalesse a metade dos membros; só que tal não aconteceu na prática, pois certos organismos escolheram médicos para os representar. Fortemente criticada foi a escassa participação de mulheres: apenas 9, num conjunto de 36 membros.
Trata-se, sobretudo, de um órgão de prestígio, dotado de incontroversa autoridade moral; não dispondo de qualquer poder impositivo, essa sua autoridade é geralmente acatada pelos poderes do Estado.
Tem sido posta a interrogativa sobre se o enquadramento ético não poderá conduzir a situações de rigidez e imobilismo científico. E recordam-se os casos de Galileu e de Harvey. Mas é evidente que tal não acontecerá. O padrão de referência não será uma ideologia, mesmo uma ideologia dominante. Em causa estará, sim, o valor