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21 DE FEVEREIRO DE 1990 1617

Que o mundo mudou é uma verdade de primeira intuição. Mesmo quem não seja um génio dificilmente foge à evidência de que mudou muito e em quase tudo. É, nomeadamente, difícil a fuga à constatação de uma seria sobreposição do social ao político. As modernas sociedades industriais geraram novas famílias de direitos, a começar pelos de validade universal. Mas estão aí, sociologicamente diferenciados e à espera de diferenciação jurídica bastante, os novos direitos do trabalho, dos consumidores, do ambiente e, desde já com destaque constitucional, os direitos, liberdades e garantias.
Tudo direitos com propensão universalizante que, sendo de cada um, são de muitos, quando não de todos.
Será que, sendo de todos ou de muitos, se justifica a sua protecção judicial pingo a pingo, com os demandantes em bicha, à espera de vez para verem julgado o seu caso, porventura igual ao do seu co-profissional ou do seu vizinho, e quantas vezes obtendo ganho de causa quando o resultado já não faz sentido, quando a indemnização foi já consumida pela inflação, quando a reparação da honra chega tarde para evitar o divórcio ou refazer o crédito, quando, enfim, o ponto de chegada de uma longa via-sacra processual é a viva imagem da ineficácia e da inutilidade? Teremos mesmo de manter quo tale a visão kafkiana do purgatório judiciário?
E, de repente, a pergunta: será que o nosso sistema jurídico é tão diferenciado do sistema jurídico romano quanto o nosso estádio civilizacional é diferenciado da civilização romana?
A resposta é a de que um abismo separa a relatividade dessas diferenças. As sociedades modernas superaram velhas concepções sobre o indivíduo e a colectividade e criaram espaço para o florescimento de entidades intermédias - organizadas, inorganizadas ou à procura de organização -, chamem-se elas comunidades, associações, sindicatos ou simples grupos com interesses afins.
De súbito, a consciência de que não basta uma protecção jurídica quase exclusivamente individual; de que há direitos e interesses metaindividuais, a meio caminho dos colectivos; de que é insuficiente o direito de acção dos directa ou indirectamente lesados; de que se aproxima o fim da concepção individualista do direito e da justiça; de que desponta no horizonte a aurora de um novo pluralismo e de um novo direito.
Sem pré-aviso, a inevitabilidade: do fim do processo a dois; do colapso da limitação da eficácia do caso julgado aos intervenientes na lide; do óbito da limitação da legitimidade processual aos titulares da relação material controvertida; do enterro do instituto da representação judicial circunscrito, ou pouco menos, à relação de mandato; da crise que abala as rotinas estabelecidas em torno dos poderes do juiz, da tipicidade da prova, do princípio da audiência e do contraditório, do ressarcimento dos danos, do papel do Estado e do cidadão na realização da justiça.
Até aqui, justiça administrada «cm nome do povo». A partir de agora, justiça administrada também com a participação do povo.

Vozes do PS:- Muito bem!

O Orador: - Se bem ajuízo, o movimento em que se desdobra esta consciência da necessidade de um outro direito parte da conflitualidade típica das escolhas políticas para a conflitualidade típica das decisões judiciais: a indústria que polui; o laboratório que falsifica; o mixordeiro que intoxica; o predador que destrói; o Átila que degrada.
Isola-se de seguida, como a um vírus, a problemática das conflitualidades de grupo a partir de interesses difusos, caracterizados fundamentalmente por pertencerem a uma pluralidade de sujeitos mais ou menos indeterminados, mas determináveis por uma qualidade comum, que pode ser a co-habitação num espaço (a bacia do Ave), ou por uma condição sócio-económica (verbi gratia a de consumidor).
Num primeiro momento, as inerentes batalhas foram protagonizadas - e ainda o são - por grupos políticos de que Os Verdes são porta-bandeiras. Até que se teve consciência de que os interesses difusos se podem proteger também a níveis diversos do da decisão política, nomeadamente através de legitimações de grupo e de formas inovadoras de participação democrática dos cidadãos nos circuitos judiciais e na realização da justiça.
Vários caminhos foram sucessiva ou cumulativamente experimentados.
Um deles consistente na instituição de órgãos públicos altamente especializados: o Ombundsman (nosso Provedor de Justiça), a família das altas autoridades (contra a corrupção, contra as restrições da liberdade de imprensa, etc.), a Food and Drug Administration, o Race Relations Board, o advogado público, alguns mais.
Outro caminho, mais anunciado do que tentado, mas já com algumas experiências positivas, pode sintetizar-se como movimento de judicialização do direito (por retoma das velhas concepções do juiz-legislador) através da extensão dos poderes do juiz e da flexibilização, centrada no seu prudente arbítrio, dos formalismos do processo.
Um terceiro caminho, traduzido precisamente na já referida extensão da legitimidade processual.
Outros ainda poderiam ser aqui chamados: a intensificação do recurso a instâncias arbitrais; a instituição de tribunais de pequenos casos (small case courts); o recurso a juízes auxiliares não togados para o julgamento das bagatelas civis e penais; o apelo à equidade, em detretimento do fetichismo da lei escrita.
Tudo contributos para a satisfação de uma necessidade que, sem embargo, continua por satisfazer: a de uma justiça expedita e eficaz.
Renasce agora, a justo título, esta problemática a propósito da regulamentação, em lei ordinária, do exercício do direito de acção popular.
Trata-se, antes de mais, de um direito de acção judicial, problemática me parecendo a mim a tentativa, que creio esboçada no projecto dos Srs. Deputados do PCP, de estender esse direito a áreas de pura intervenção administrativa e procedimental.
Característico da acção popular - nos domínios em que a Constituição a impõe ou a lei ordinária a consagra - é que um só cidadão, ainda que não titular directo de certo interesse lesado, e ainda que não munido de mandato outorgado pelos efectivos titulares desse interesse, possa por iniciativa própria exercer em juízo, em representação de todos os titulares do interesse em causa que dessa representação se não auto-excluam, o direito de acção civil ou administrativa, bem como desencadear acção penal, para prevenir ou fazer cessar a lesão, perseguir o infractor ou efectivar o direito à correspondente indemnização.
São óbvias as vantagens da acção popular, traduzidas cm: economia de processos e juízos; economia de custos; economia de tempo; reforço de eficácia; reforço de