19 DE OUTUBRO DE 1990 53
(...)meiros passos e tropeçam a cada momento em conflitos que de semânticos logo passam a políticos e de pequenos logo se convertem em factores de crise diplomática bloqueadora.
Acresce que subsistem na ordem jurídica de Macau velhos fósseis jurídicos herdados do século XIX português, relíquias ineptas, dificuldades inacreditáveis de determinação das leis vigentes (chega a ser necessário discutir, e muito seriamente, se a certos crimes de corrupção e aplicável o Código Penal vigente em Portugal ou a lei local, por exemplo; há, como aliás reconheceu o Sr. Ministro da Justiça, incoerência, falta de harmonização, para não dizer mesmo pior), o controlo judicial das finanças públicas é uma verdadeira aberração e a jurisdição constitucional uma raridade. Proliferam meios informais de resolução de litígios, formas brutais de justiça privada, é o mesmo que dizer injustiças motivadoras de escândalo público. Se a força pura ou a força da pataca puderem fazer fraca a forte lei, seguramente, Srs. Deputados, reduziriam a pó uma lei fraca.
Por isso é que temos de evitar que tal ocorra no caso vertente. Daí também o melindre das opções a tomar. Sobre essas opções deixo três brevíssimas notas.
Em primeiro lugar, a Constituição e o Estatuto Orgânico quiseram evitar dois perigos situados em pólos opostos: enjeitou-se, por um lado, a cópia mecânica do modelo organizativo que preside à estruturação e funcionamento dos tribunais portugueses, porque de nada, mas mesmo de nada, serviria o transplante -não medrariam em solo chinês figuras que até entre nós estiolam, como o Sr. Ministro da Justiça bem sabe, face à aplicação claudicante da nova organização judiciária-; vedou-se, por outro lado, a criação de estruturas que, pela sua dependência e falta de isenção, pudessem desmerecer o nome honrado e honroso de tribunais. A proposta do Governo tropeça entre uma coisa e outra, pelo que há que pô-la firmemente no ponto constitucionalmente desejado. É esse o nosso voto.
Em segundo lugar, trata-se de aprovar uma lei de bases, mas não a lei básica do território (disso todos temos consciência), nem uma lei de autorização em branco. As opções fulcrais hão-de primar pela nitidez e densidade do recorte, fidelidade a princípios constitucionais basilares, realismo, exequibilidade e flexibilidade. A lei serve para enquadrar uma transição para a autonomia plena, por isso mesmo deve distinguir claramente o ponto de partida, o ponto de chegada e o caminho de percurso.
Saliento apenas três implicações desta filosofia.
O Estatuto Orgânico prevê que o Presidente da República corte o «cordão umbilical» hoje existente entre o aparelho judicial local e os tribunais da Republica. A isto se tem chamado «comutação» - termo importado da linguagem eléctrica. Mas a norma tem uma redacção sibilina e tem sido mal interpretada. Não se trata de, no último minuto, nas vésperas de Dezembro de 1999, cortar a «energia» da rede judicial da República para só então passar a alimentar o sistema a partir de uma bateria completa de «geradores» judiciais locais. O Presidente da República tem o poder-dever de ir suprimindo progressivamente as restrições à plenitude e exclusividade da jurisdição dos tribunais de Macau, sucessiva e provavelmente por esta ordem: primeiro, os actos do governador e dos secretários-adjuntos em matéria fiscal, administrativa e aduaneira deverão deixar de ser julgados em Lisboa; segundo, deverão cessar as competências do plenário do Supremo Tribunal Administrativo; terceiro, perderá poderes o plenário do Supremo Tribunal de Justiça e o plenário das suas secções criminais; quarto, o Tribunal Constitucional começará por perder competências de fiscalização da legalidade e só por último deverá cessar as suas funções de fiscalização da constitucionalidade, garantia suprema do respeito pela ordem constitucional. Cabe à presente lei de bases precisar os critérios e prioridades da devolução de todos estes poderes, mas a proposta não o faz.
Outra característica de uma boa lei de bases é a de que deve balizar adequadamente o processo de regulamentação, desde logo respeitando as regras de divisão de poder entre órgãos do território. O artigo 37.º da proposta da lei, Srs. Deputados, reserva ao Governador a elaboração dos diplomas intercalares de adaptação das leis processuais vigentes no território. Sucede que, nos termos do Estatuto Orgânico, essa matéria é também da competência da Assembleia Legislativa de Macau. Sabendo-se que há, neste momento ainda, um conflito sobre essa matéria, a solução que o Governo propõe é, além de antiestatulária, politicamente muito imprudente, pelo que deve ser repensada.
Por outro lado, é preciso não esquecer que a lei deverá ser regulamentada por fases e em função de um quadro de necessidades que pode alterar-se muito e que vai exigir processos negociais complexos, lentos e incertos. A Assembleia da República deve ter esse factor em conta.
A terceira e última nota visa tão-só sublinhar que a proposta pode e deve ser prudentemente densificada quanto aos grandes princípios e revista profundamente quanto ao estatuto dos magistrados e auxiliares de justiça. As alternativas à técnica usada para delimitar as competências dos tribunais devem ser cuidadosamente testadas. Injustificáveis omissões devem ser colmatadas - no tocante à formação, aos requisitos e critérios de nomeação, aos direitos e deveres e garantias dos magistrados, ao recorte de certas categorias de tribunais, ao regime de exercício da advocacia, ao enquadramento das relações entre magistrados e funcionários, às condições técnicas e materiais de apoio. Devem, evidentemente, ser mantidos aspectos positivos como a aposta nos meios não jurisdicionais de composição de conflitos, o recurso de amparo para defesa de direitos fundamentais e a genuinidade de uma fiscalização financeira que combata a má gestão, o desperdício e a corrupção.
Srs. Deputados, sabemos o que há a fazer e o prazo de que dispomos. Tudo exige que vençamos o desafio de dotar Macau de uma organização judiciária aberta ao futuro.
Por tudo o que expus, o Grupo Parlamentar do PCP não pode votar favoravelmente esta proposta de lei, mas tal facto não só não diminui como intensifica o nosso empenhamento no êxito deste processo legislativo. Esse êxito é, sem duvida, um desígnio nacional, a que nos associamos de pleno.
Aplausos do PCP.
Entretanto reassumiu a presidência o Sr. Presidente, Vítor Crespo.
O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.
O Sr. Narana Coissoró (CDS): - Sr. Deputado José Magalhães, dada a importância desta matéria, V. Ex.ª (...)