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21 DE FEVEREIRO DE 1979

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Merecedor das maiores atenções nos meios especializados do estrangeiro, o texto então dado a público foi objecto de vários estudos de revisão e pareceres. Mas não foram poucas as vicissitudes por que o projecto inicial passou, em demoradas tentativas de apreciação que escondiam, mais ou menos validamente, a apreensão face à sua modernidade, no quadro de uma aparelhagem de controle estadual pensada predominantemente para a repressão.

A ideia de promover a sua consagração legal foi activada pelo último Governo Provisório e retomada, num mais amplo empreendimento global de adaptação do nosso direito às exigências da Constituição da República Portuguesa de 1976 e do seu espírito, pelo Ministro da Justiça do I Governo Constitucional.

A comissão nomeada para o efeito, cujos trabalhos se desenvolveram com vista à elaboração da adequada legislação penal, terminou os seus trabalhos em relação ao núcleo central do direito penal — a «Parte geral» do Código Penal, que é justamente objecto do presente projecto de lei.

E julga-se de ioda a conveniência que ele seja consagrado legislativamente de imediato. Certo é que a sua aplicação está condicionada pelo articulado complementar de outras normas, como as referentes à «Parte especial» do Código, ao chamado «direito de mera ordenação social», à legislação relativa a menores imputáveis, ao direito penitenciário ... E não só isso: importa organizar a aparelhagem da ajuda social que leva à recuperação social dos delinquentes através de medidas não institucionais, fora da prisas, cujo processo crítico se iniciou, aliás, há muito tempo e tem ganho larga repercussão no mais alto domínio do saber depois do tão falado livro de Michel Foucault Surveiller et Punir.

Só que estas carências legislativas não impedem que desde já obtenham consagração como lei as linhas ou paredes mestras de um movimento legislativo mais vasto. Para isso propõe-se um meio técnico de uma vaoatio legis, fixada em função da entrada em vigor das referidas normas ou estruturas sociais de assistência complementares. O que, de resto, tornará possível posteriores reflexões do legislador em face das críticas que esse primeiro texto legal vier a suscitar, permitindo ainda, sem quebra da segurança com que se consagrarem aquelas ideias mestras, a introdução de certas medidas pontuais que o reajustamento social português pode requerer. Como permitirá ainda uma programação das reformas a introduzir em toda a matéria penal.

2 — O diploma que agora se propõe sofreu, em relação ao projecto inicial, largamente fundamentado, importantes modificações, quer formais, quer sistemáticas e materiais.

Assim, procurou-se expurgá-lo de todas as disposições que envolvessem comprometimentos com certas concepções sobre política criminal, tornando nessa medida a nossa futura lei penal mais aberta às construções dogmáticas, teleológicas ou tópicas, e alargando dessa forma o prazo de sobrevivência face às pressões do devir histórico ou sócio-económico da sociedade portuguesa.

Ao mesmo tempo, afinaram-se certas soluções legais em domínios como, por exemplo, o da comparticipação criminal, o da relevância do erro, o da

tentativa, da reincidência ou dos limites ao funcionamento da não exigibilidade que se estreitaram em nome de uma certa concepção de defesa social.

Embora fiquem ainda aquém dos previstos na legislação vigente, foram igualmente elevados os limites máximos da pena de prisão que constavam do projecto de 1963, o que indubitavelmente se irá reflectir na «Parte especial». De qualquer forma, na legislação especial a que se refere o artigo 43.°, não deixarão de ser tomadas em conta as recomendações constantes da resolução sobre o tratamento dos delinquentes sujeitos a penas de prisão longas, adoptada em 17 de Fevereiro de 1976 pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa. Como não se esqueceram também as recomendações adoptadas em 9 de Março de 1976 pelo mesmo Comité de Ministros relativas à substituição das curtas penas de prisão.

Considerou-se ainda a impossibilidade constitucional de conversão da multa em prisão, propondo-se a sua execução de forma mais expedita e eficaz e admitindo-se uma variedade de formas de substituição que permitam tornar efectiva a condenação em caso de não pagamento da multa.

Por último, para só aqui deixar registadas as alterações mais significativas, procurou-se ainda fazer mergulhar as medidas não institucionais nas próprias estruturas de controle social não formal, de modo a chamar a sociedade a colaborar na compreensão ou explicação do fenómeno do crime e na recuperação dos delinquentes. Como, por outro lado, se entendeu que a sociedade não devia também permanecer desligada ou indiferente à sorte de quem, por qualquer forma, é lesado pela prática de um crime; daí que se propusesse a criação de um seguro social que garanta a indemnização da vítima nos casos em que ela não pode ser satisfeita pelo delinquente.

3 — O projecto parte do reconhecimento da ideia de culpa e da compreensão do homem como um ser livre e responsável.

E não deve estranhar-se que assim aconteça. É que o pressuposto da culpa, ou seja, a liberdade de decisão de cada um para se autodeterminar de harmonia com os valores, não deve hoje conceber-se como um puro apriorismo, já que são as próprias ciências que estudam o homem que nos fornecem dados irrefutáveis para a recusa de uma concepção do homem como um ser fechado na sua existência natural, mera combinação de forças naturalísticas endógenas e exógenas.

E é precisamente essa imagem do homem como uma «estrutura aberta», como um ser dotado de vontade livre, para a qual a antropologia, a psicologia, a medicina ou a sociologia apontam, que o direito criminal deve também acolher. Nem se compreenderia, aliás, que fosse precisamente este ramo de direito a recusar uma tal concepção do homem, quando são mesmo as próprias ciências que lhe são auxiliares, como a penitenciária, a orientarem-se em larga escala no sentido de averiguar o melhor caminho para promover o sentimento da responsabilidade própria do delinquente.

Para além do que o princípio da culpa, ao pressupor a autonomia ética do homem, nos situa num plano especialmente adequado à defesa dos direitos e liberdades fundamentais do cidadão, oferecendo, por isso mesmo, a base para um direito penal respeitador da dignidade humana.