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II SÉRIE — NÚMERO 101

A Lei n.° 11/82 não consagra, e bem, esta última questão apontada, nem ela pode considerar-se ai abrangida, ainda que por interpretação extensiva do citado normativo legal.

IV

O problema, contudo, é hoje ainda muito mais claro face à alínea j) do artigo 167." da Constituição, texto resultante da revisão constitucional de 1982, e onde se diz ser da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre o «regime de criação, extinção e modificação territorial das autarquias locais».

Quando se fixam os limites de uma circunscrição territorial de certa autarquia criada ou extinta está a dizer-se que a esta se definem os limites discriminados no respectivo título, e quando se modificam os seus limites está a dizer-se que os anteriormente definidos passam a ser diversos por via da sua alteração.

Em ambos os casos, o legislador está a proceder a um acto consciente, em que voluntariamente quer atribuir limites a uma nova autarquia ou quer alterar os que delimitavam certa autarquia existente.

Daqui se infere, e cremos que de forma evidente, que nada disto tem a ver com o dirimir de conflitos entre autarquias quanto aos seus limites: é que, ao surgir esse conflito ou diferendo, as autarquias litigantes sustentam cada uma delas pontos de vista não coincidentes quanto aos limites que a cada uma delas havia sido já anteriormente fixado nos títulos que as constituiu e onde se delimitou a sua área territorial.

Só que, normalmente, por dúvidas surgidas pelo decurso dos anos, por deficiente discriminação das linhas divisórias constantes dos documentos, por vezes antiquíssimos e com alusões a pontos e a nomes que o tempo foi destruindo ou adulterando, esses limites, apesar de tudo fixados nos títulos, se tornam na realidade de difícil apuramento, e daí o surgimento dos diferendos.

Aliás, isso mesmo sucede também por vezes no tocante à linha de demarcação entre prédios —ou porque desapareceram os sinais, ou porque o decorrer do tempo tomou de difícil apuramento esses mesmos sinais—, mas tal não significa que eles não tivessem e não tenham uma delimitação. O que importa é esclarecer qual ela é.

Porém, esse esclarecimento quando vem dizer qual a linha divisória não fixa uma nova delimitação, nem altera a anterior; apenas diz, face aos elementos que ao julgador são facultados, qual o limite de um e outro, face aos títulos e outros elementos factuais de que pode dispor, e que lhe cumpre interpretar, apurar e aplicar. É uma mera decisão-declaração de uma situação preexistente, e não uma decisão constitutiva ou modificativa.

Porém, para se obter tal decisão, como é bem sabido, urge analisar e interpretar títulos, o que na maior parte dos casos tem de ser acompanhado de meios probatórios da mais variada ordem, que só um tribunal, através dos meios processuais ao seu alcance, pode conseguir.

V

No apuramento dos limites de áreas territoriais de autarquias tudo se passa com enorme similitude, sendo

manifesto que nem o Governo, nem a Assembleia da República, dispõem de meios capazes de proferir um veredicto factual e juridicamente fundamentado, pois as suas decisões assentam em princípios bem diversos daqueles que subjazem às decisões judiciais.

Em meu entender, um diferendo entre autarquias (freguesias ou municípios) relativo aos limites entre elas não pode ser dirimido por órgãos administrativos ou políticos, mas sim e apenas pelos tribunais, também estes constitucionalmente órgãos de soberania.

Na realidade, «as autarquias são pessoas colectivas», como resulta do próprio n.° 2 do artigo 237.° da Constituição, embora tenham como seu substrato básico o respectivo território e a população que nele reside.

Por sua vez, o n.° 2 do artigo 12.° da Constituição preceitua que «as pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza», o que significa que em tudo que não seja incompatível com a sua natureza (de pessoa colectiva territorial) a elas assistem os direitos conferidos, além do mais, na parte i da aludida Constituição. Entre esses direitos, e porque perfeitamente compatível, se encontra o direito à protecção jurídica e o de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos (artigo 20.°).

E se a todo e qualquer direito corresponde uma acção, é evidente que quando uma autarquia vê que uma outra põe em causa o seu direito quanto à área da sua circunscrição territorial, a ela assiste o direito de lançar mãos de uma acção judicial —a adequada a dirimir e decidir o diferendo — para ver assegurada a protecção jurídica desse seu direito.

Aos tribunais compete administrar a justiça e dirimir os conflitos de interesses, sejam eles públicos ou privados (cf. artigos 205.° e 206.° da Constituição).

Ora, no caso de litígio quanto aos limites entre autarquias está em causa a necessidade de dirimir conflitos de interesses entre autarquias, duas ou mais, interesses esses que, apesar de públicos, aos tribunais compete dirimir.

Eis porque, e em breve análise da questão, defendo que à luz da Constituição é aos tribunais que compete dirimir as questões ou diferendos que porventura surjam quanto aos limites das circunscrições territoriais das autarquias, sejam elas freguesias ou municípios. As respectivas decisões não vão definir ou fixar esses limites, nem modificá-los, mas tão-somente declarar quais esses limites face aos títulos existentes, sejam eles quais forem.

VI

Se, por hipótese, alguma vez a Assembleia da República — como alguns perfilham— vier a legislar no sentido de dirimir üm tal conflito, a lei respectiva será necessariamente inconstitucional por dimanar de um órgão que para tanto não tem competência.

Por isso, e para concluir, direi que só uma leitura apressada do artigo 1.° da Lei n.° 11/82 poderá levar a sustentar que à Assembleia da República incumbe dizer qual a linha delimitadora entre duas ou mais autarquias quando entre estas surjam divergências quanto a essa linha.

Considero que este entendimento é o que resulta claramente dos princípios norteadores da Constituição da República em matéria de divisão de competências entre os vários órgãos de soberania.