1108-(56)
II SÉRIE-A — NÚMERO 41
Pessoalmente, julgo que poderia dar-se outra interpretação, mas, repito, era essa a interpretação corrente.
Em 1997, houve duas importantes modificações constitucionais: por um lado, ao artigo 9.° foi aditada uma
alínea dizendo que passava a ser incumbência ou tarefa fundamental do Estado promover a igualdade entre homens e mulheres — promover, e não simplesmente estabelecer ou regular— e, por outro lado, no artigo 112.°, passado depois a 109.°, foi especificamente feita referência à igualdade de participação de homens e mulheres no sistema político e à eliminação de quaisquer formas de discriminação.
Foi isso que ficou estabelecido em 1997.
A única interpretação que me parece possível, tendo em conta estas novas normas e o confronto com as normas anteriores, é de que o legislador ordinário está obrigado a adoptar medidas positivas no sentido do reforço da participação de ambos os sexos no exercício de cargos políticos.
Há uma imposição legiferante a partir de 1997. Por conseguinte, a não serem adaptadas medidas, verificar-se-á uma inconstitucionalidade por omissão.
A revisão constitucional já foi há quase ano e meio e há uma inconstitucionalidade por omissão desde essa altura.
De resto, deve dizer-se, a Assembleia da República — permitam-me que também o diga— tem sido muito pouco diligente em concretizar as novas normas constitucionais vindas da revisão de 1997. Nem. sequer, tanto quanto sei, fez a adaptação do seu Regimento às novas normas constitucionais.
Congratulo-me com o facto de agora a Assembleia da República ir tomar posição sobre este problema.
Portanto, em termos jurídico-constitucionais, julgo que
a proposta de lei que é agora apresentada — e que, de
resto, é mais modesta do que a recomendação que tinha sido formulada pelo grupo de trabalho — dá exequibilidade às novas normas constitucionais.
Há alguns argumentos não já de natureza estritamente jurídica, mas de natureza política ou jurídico-política que têm sido esgrimidos contra a adopção de medidas como aquelas que constam da proposta de lei.
Há, essencialmente, quatro argumentos que têm sido apontados contra as medidas do género daquelas que constam da proposta de lei.
Em primeiro lugar, o princípio da unidade da representação política; em segundo lugar, o princípio da liberdade de associação ou da liberdade de candidatura; em terceiro lugar, o princípio democrático; em quarto lugar, a ideia de que deveria ser preferida a auto-regulação partidária em vez de uma qualquer imposição por via legislativa.
Vejamos esses quatro argumentos.
Em primeiro lugar, o princípio da unidade da representação política. Diz-se ou pode dizer-se que o estabelecimento de um sistema de quotas ou de algo parecido —de resto, na minha opinião, aquilo que consta da proposta não é especificamente um sistema de quotas—, põe em causa a unidade da representação política.
A grande conquista do Estado representativo moderno é a unidade do povo como titular da soberania. Os Deputados representam todo o povo e não representam regiões e muito menos pode haver Deputados que representem este ou aquele sexo. Haver quotas ou algo parecido poderia conduzir a um fraccionamento da representação política, poderia quebrar, em última análise, o princípio da soberania nacional.
Contra este argumento pode aduzir-se, em primeiro lugar, que o problema que consta da proposta de lei não tem que ver com a unidade de representação, não tem que ver com a titularidade dos poderes dos Deputados, mas
tem que ver apenas com condições ou requisitos de elegibilidade ou, mais especificamente, mais rigorosamente, tem que ver, com candidaturas. É a nível de candidaturas que se dá a intervenção, mas os candidatos, porventura, uma vez eleitos, continuam a representar todo o povo e não representam este ou aquele sexo, tal como os candidatos que provenham desta ou daquela classe ou desta ou daquela categoria profissional ou desta ou daquela faixa etária não representam uma classe, uma categoria profissional ou uma faixa etária, continuam a representar todo o povo.
Ainda pode, em segundo lugar, referir-se é que há uma diferença fundamental entre homens e mulheres, entre os sexos e qualquer situação de classe, situação profissional, faixa etária, geração, condição regional. É que a diferença de sexo trata-se de algo inerente à natureza humana. Através de uma maior participação de todos os sexos ou de uma aproximação da participação de ambos os sexos, no fundo, consegue-se obter uma maior unidade da representação política.
Um segundo argumento tem que ver com à liberdade de associação partidária e com a liberdade de candidatura.
Pode dizer-se — e já tenho ouvido e lido — que estabelecer por via legislativa a obrigatoriedade de os partidos apresentarem candidatos em razão dos sexos é uma intervenção que põe em causa o princípio da liberdade de associação e o princípio da liberdade de candidatura. Mas isso, a meu ver, esquece dois pontos: em primeiro lugar, que os partidos não são associações quaisquer, que
os partidos, embora não sejam pessoas colectivas de direito
público, têm um estatuto constitucional devido à sua intervenção privilegiada no moderno Estado representativo, na vida política. Os partidos têm um estatuto específico, um estatuto que lhes confere direitos, um estatuto donde também podem provir obrigações, ónus e, nessa perspectiva, é perfeitamente admissível que a Constituição, que, de resto, reserva aos partidos a apresentação de candidaturas à Assembleia da República estabeleça determinadas regras a respeito dessas mesmas candidaturas.
A liberdade de candidatura partidária deve ser entendida no contexto constitucional e legal.
O terceiro elemento tem que ver com a ideia de que o estabelecimento de quotas ou de medidas parecidas iria pôr em causa a-própria liberdade dos eleitores, o próprio princípio democrático. Os eleitores seriam constrangidos a votar em candidatas ou candidatos por imposição legislativa, não tendo a possibilidade de escolher aqueles ou aquelas que considerassem mais idóneos.
A resposta a este argumento encontra-se, a meu ver, em dois planos: em primeiro lugar, não pode esquecer-se de que, de acordo com o sistema eleitoral que temos e que tem sido criticado mas que ainda não foi alterado, os cidadãos não escolhem directamente candidatos mas escolhem, sim, listas de candidatura. E, portanto, a sua liberdade, à partida, também já se encontra, por essa via, condicionada. O problema seria diferente se fôssemos adoptar um sistema maioritário com sufrágio uninominal.
Mas, sobretudo e em segundo lugar, a realidade é que o próprio princípio democrático tem de sofrer limitações, o princípio democrático não é um absoluto, dentro de um Estado de direito democrático, o princípio democrático é um princípio a par de outros, tem de se compaginar com