4 DE MARÇO DE 1999
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da República, votar ou deixar de votar esta proposta de lei ou qualquer outra de sentido parecido, que cabe apresentar listas de candidaturas à Assembleia da República ou ao Parlamento Europeu, no nosso sistema.
Eles têm o exclusivo da apresentação das candidaturas. E, portanto, podem escolher actuar de uma maneira ou da outra. Escolher obrigar através de lei a funcionar de uma determinada maneira ou escolher internamente actuar de uma outra determinada maneira.
Julgo que, neste momento —e em particular porque estamos muito perto de eleições —, preferia ainda imaginar que seja possível que os partidos políticos sejam capazes de nas eleições deste ano demonstrar um comportamento qualitativamente diferente daquele que aconteceu no passado.
Estou a falar da minha preferência pessoal, mas não tenho dúvidas que, a não ser possível ir mais longe nisto, é'legítimo do ponto de vista constitucional e é legítimo do ponto de vista dos princípios da razoabilidade, daquilo que é aceitável, que o legislador vá mais longe do que até agora, se é que foi a algum sítio neste domínio em termos de exigências do que quer que seja.
Não tenho dúvidas de que está aqui'em causa uma questão de qualidade da democracia representad va, uma questão de enriquecimento da democracia representativa. Não porque as mulheres fazem melhor e os homens fazem pior, mas porque um povo que tem mais de 50% das mulheres entre si não pode verdadeiramente senür-se, do ponto de vista substancial, razoavelmente representado por órgãos de representação política onde, como hoje na Assembleia da República, as mulheres são apenas 12% daqueles que intervêm.
E como todos aqueles que temos andado muitos anos a falar e a estudar estas questões, se um número muito elevado, hoje, de mulheres eleitoras, em todos os países, já introduziram modificações muito importantes naquilo que é politicamente relevante e naquilo com que os políticos têm de se preocupar quando tomam decisões políticas, ainda estamos muito longe de uma modificação qualitativa ocorrer também ao nível da representação, o que sabemos só acontece com um nível razoavelmente mais elevado de mulheres nos órgãos de representação política.
Parece-me perfeitamente legítimo que se tomem medidas destinadas a que se avance neste sentido. Neste momento e a esta distância de eleições, preferia que os partidos políticos portugueses ainda fossem capazes de, através de medidas internas, as segurar uma modificação substancial na representação de mulheres no Parlamento Europeu e na Assembleia da República do que aquela com que podemos contar hoje.
3 — Depoimento da Prof.' Doutora Lúcia Amaral:
Gostaria de introduzir a minha perspectiva sobre este tema e a minha participação,, com muito gosto, na comissão de trabalho que elaborou o estudo, contando, se me permitem e se não é fastidioso, uma pequena história, uma petite histoire pessoal.
Prestei há pouco tempo provas de doutoramento na Universidade de Lisboa, em Direito,- e estava a assistir às minhas provas uma tia minha com mais de 70 anos que, como todas as mulheres da sua idade ou a esmagadora maioria das mulheres da sua idade e da sua geração, não teve acesso a uma instrução superior, nunca viveu fora de casa, nunca participou na vida social, económica ou cultural. E assistia às minhas provas.
No fim, quando me cumprimentou calorosa e muito simpaticamente, disse-me uma coisa que me embaraçou,'
de uma forma extraordinária, e que me deixou estupefacta. Disse-me: «Menina, agora compreendo porquê é que o direito é só para homens.»
Deixou-me, de facto, embaraçadíssima e estupefacta porque, aos olhos da minha tia, eu tinha-me comportado naquelas provas como um homem, isto é, ela associava aos homens o calor do debate, que é próprio da nossa área cultural e científica, o dramatismo da prova, que é próprio da vida universitária, e, portanto, a combatividade que eu tive de exprimir.
Ela não associava, psicológica, cultural e afectivamente, tudo isto à feminilidade e, portanto, tinha partido do princípio de que eu tinha revelado uma nova faceta para ela desconhecida. E uma faceta algo perturbadora para a minha própria identidade, que implicava uma qualquer alteração de género.
Permito-me contar esta pequena história pessoal apenas para vos recordar que o problema de que estamos a tratar é um problema de uma complexidade humana imensa. Humana para mulheres e para homens, que tem implicações de representações culturais e psicológicas, que transcendem em muito a questão específica da representação política, mas que, de algum modo, o domínio do poder, o domínio da participação nos órgãos de representação política é o domínio onde todas estas questões parecem de forma «progressística».
E contada esta pequena história, conto também, se me permitem, a minha história de participação no grupo de redacção e a minha história da mudança de perspectivas sobre esta questão.
Quando comecei a trabalhar, com muito gosto, sob a presidência do Prof. Jorge Miranda e em colaboração com a Dr." Maria Leonor Beleza, com o Prof. Vital Moreira e com a Prof.* Luísa Duarte sobre esta questão, tinha, em relação ao tema, tão feio, e ao nome, tão feio, das quotas uma posição de rejeição total. E a minha posição de rejeição total, para além de questões de indignidade ou de humilhação pessoal, que para o caso não interessam minimamente, o meu princípio de rejeição baseia-se, fundamentalmente, no seguinte: eu estudo e ensino Direito Constitucional e sei que o pensamento reaccionário francês do século xix, que quis combater tudo aquilo que a Revolução Francesa gerou no património do constitucionalismo moderno e que fez aquilo que nós, hoje, somos e que explica que, aqui, hoje, nós estejamos a conversar o pensamento reaccionário francês, pela mão de um dos seus grandes próceres, Joseph de Maistre, que costumava rir-se do artigo 1° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que diz que «todos os homens nascem livres e iguais em direitos», dizendo: «Homem, ser humano, nunca tal vi. O que eu conheço é franceses, ingleses, russos e alemães.»
Se nós hoje aqui estamos e se vivemos da forma como vivemos, é precisamente porque conseguimos o grau de abstracção que permite que nos concebamos como seres humanos que num determinado território formam um povo que elege e que é eleito. O que a mim me custava era admitir que essa conquista civilizacional que implica uma recusa de concretização, da distinção entre o género humano, fosse para a mais alta e nobre função que é a função de eleger, negada pela divisão do povo entre homens e mulheres, com consequências políticas.
Era isso que mais me custava porque, de algum modo, isso implicava um recuo na capacidade de abstracção que fez a nossa riqueza civilizacional.