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II SÉRIE-A — NÚMERO 38

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os saiba interpretar: não é razoável que se citem excertos de materiais dirigidos a professores, que os usarão

para preparar as suas aulas, e os mesmos sejam, com mera intenção polémica, apresentados como se fossem

textos a fornecer às crianças para estudo.

É preciso avaliar o risco de aplicar a qualquer disciplina o mesmo padrão de raciocínio que tem sido proposto

para a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Há convicções filosóficas (em sentido lato, incluindo

convicções religiosas) que, por exemplo, rejeitam a teoria da evolução natural e aceitam o criacionismo, que

defendem que a Terra é plana, que justificam agressões sexuais a meninas de tenra idade ou que proíbem

práticas médicas como as transfusões de sangue. Algumas dessas convicções conduzem a práticas que são, à

luz do nosso ordenamento jurídico, crimes. Outras são convicções que chocam frontalmente com o quase-

consenso da comunidade científica: podemos proibir a sua expressão no debate público? Não podemos e não

devemos. Podemos aceitar tudo como igualmente válido e igualmente ensinável no nosso sistema educativo?

Não podemos e não devemos. Seria útil, para nos apercebermos dos riscos de certos excessos, fazer uma

visualização de (e posterior reflexão sobre) o documentário de 2018 intitulado «Hail Satan?», realizado por

Penny Lane, apresentando o percurso de um grupo que, nos Estados Unidos, assumia o estatuto de seita

satânica para, por essa via, reivindicar o estatuto de religião e, consequentemente, todos os privilégios

conferidos naquele país às organizações religiosas – com consequências que, creio, gostaríamos de evitar ver

reproduzidas entre nós por via do extremar de posições.

Mesmo fora das temáticas de implicação religiosa, quem procure o conflito extremado em torno da educação

encontrará sempre um caminho para isso (como, sem novidade, se pode transformar a temática dos

Descobrimentos em polémica, precisamente contestando que sejam descobrimentos, tal como se pode

transformar em polémica qualquer matéria de história que envolva conflitos armados com outras nações ou

povos, onde poderá notar-se uma perspetiva «portuguesa» oposta às perspetivas de cidadãos de outras

nacionalidades ou outras ascendências).

A Educação para a Cidadania é demasiado importante para ser diminuída por qualquer arremedo de debate

público tosco onde se despreze o caminho percorrido ao longo de tantos anos e onde sejam decantadas

posições especificamente político-partidárias imediatistas em simplificações que cuidam pouco de concretizar

cada vez mais aperfeiçoadamente os comandos constitucionais e as diretivas da LBSE quanto à formação de

cidadãos. É preciso ser exigente, mas sem desconsideração grosseira pelo trabalho feito. Um grupo de 27

Diretoras e Diretores de Agrupamentos de Escolas publicaram, a 23 de setembro de 2020, um texto no jornal

Público, intitulado «Porque estamos com a Cidadania…», onde deixam a seguinte reflexão:

«Temos consciência que não é uma disciplina, e muito menos de forma isolada, que transforma os nossos

alunos em cidadãos solidários e empenhados no bem comum, mas acreditamos que possibilita, seguramente,

uma «reflexão consciente sobre os valores espirituais, estéticos, morais e cívicos, no sentido de assegurar o

seu desenvolvimento cívico equilibrado» (Aprendizagens Essenciais de Cidadania e Desenvolvimento).

Ao longo de todos estes anos, quantos projetos se têm desenvolvido nestas disciplinas, que olham para os

desafios presentes e colocam os nossos jovens perante essas necessidades futuras? Quantos milhares de

crianças e jovens refletiram sobre questões que se prendem com o ambiente, com a sustentabilidade, com a

saúde e bem-estar, com a identidade, com a inovação, com a interculturalidade, com a criatividade, com a

democracia e as instituições que a sustentam? Quantos ficaram a conhecer a Carta Internacional dos Direitos

Humanos e a biografia de pessoas que por esses direitos lutaram e deram inclusive as suas vidas para que não

passássemos pelas mesmas privações? Quantos, ao utilizarem as mais diversas práticas, instrumentos e

recursos, aprenderam a escutar e respeitar a opinião do outro, a organizar o trabalho em grupo, a serem

cooperantes e criativos, pensando fora da caixa e colocando-se no lugar dos outros? Quantos desenvolveram

o espírito crítico ao serem confrontados com factos e opiniões sobre os quais foi preciso refletir e tomar

posições? Quantos perceberam a importância de um bem maior, o bem comum, que podemos ajudar a construir,

sem nos diminuirmos como pessoas, bem antes pelo contrário, crescendo como indivíduos? Acreditamos que

serão muitos. Mas, se fosse apenas um, já teria valido a pena.»