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II SÉRIE-A — NÚMERO 97

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ao suicídio relativamente a pessoas – por exemplo, doentes terminais – em situações extremas e de grande

sofrimento só não seriam punidas criminalmente, caso fosse reconhecido, em concreto, que o agente atuara

em estado de necessidade (desculpante), em termos de se justificar uma dispensa de pena (cfr. o artigo 35.º,

n.º 2, do Código Penal). Recorde-se que foi esse o caminho seguido nos Países Baixos até à aprovação, em

2001, da legislação que despenalizou e regulou a eutanásia ativa e o suicídio assistido (cfr. supra o n.º 27.1).

Porém, como é fácil de compreender, em tais circunstâncias, «o caminho para a não punibilidade do agente é

viável, mas está cheio de dificuldades de percurso e, em consequência, de incertezas quanto ao resultado

final. […Em tais situações o percurso é] muito incerto quanto aos seus resultados, do que deriva a

impossibilidade de os médicos, sobretudo aqueles que convivem diariamente com os limites da vida,

encontrarem nas normas penais um esteio claro e seguro pelo qual possam conformar a sua atuação» (cfr.

Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, Constituição…, cit., anot. XXX ao artigo 24.º, p. 537).

Mas tal insegurança acaba por atingir negativamente também os próprios doentes, na medida em que se

veem privados, frequentemente em situações-limite de grande sofrimento físico e angústia existencial, de uma

escolha que, na sua ótica, os poderia libertar. Para eles, a liberdade de morrer com a ajuda profissional e

qualificada de um terceiro poderá significar um último reduto da sua autonomia pessoal, a última possibilidade

de poderem tomar uma decisão central para a respetiva existência. E, um dos objetivos subjacentes à norma

do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto é, claramente, a de, em condições controladas e materialmente justificadas na

ótica da pessoa em sofrimento, conferir-lhe a liberdade de escolher morrer com a assistência – considerando

aqui a autoadministração acompanhada e supervisionada de fármacos letais ou a heteroadministração dos

mesmos fármacos, a seu pedido – qualificada de terceiros sem os sujeitar a uma ação penal.

Assumindo que a antecipação da morte não deve ser banalizada nem normalizada – mantendo por isso a

incriminação da morte a pedido e da ajuda ao suicídio para a generalidade dos casos – mas reconhecendo

igualmente existirem situações mais ou menos típicas em que a aquela pode ser justificada – e já hoje deve

ser desculpada – terá o legislador, por via do referido artigo 2.º, n.º 1, procurado excluir a punibilidade da

mesma em situações que se lhe afiguravam mais gravemente contrárias à autonomia individual da pessoa em

sofrimento, relativamente à adoção e concretização de uma decisão central na existência de qualquer ser

humano e, por conseguinte, também relevante quanto à sua dignidade como pessoa. Por outras palavras, o

autor do Decreto n.º 109/XIV optou por tentar a generalização de soluções casuísticas consideradas justas e

razoáveis, disciplinando-as normativamente (sem prejuízo de, mesmo para além dos limites materiais

previstos no artigo 2.º, n.º 1, continuar a ser possível invocar causas de justificação e de exculpação quanto a

casos não previstos).

32. Sucede que a atuação dessa autonomia pessoal reconhecida pelo legislador implica a mencionada

colaboração (voluntária) de terceiros. Aliás, um aspeto decisivo de tal reconhecimento consiste precisamente

em não sujeitar o terceiro disponível para ajudar outrem a morrer – independentemente da modalidade

concreta que a assistência revista: mera ajuda ou prática do ato causador da morte – à perseguição e punição

criminal, que, não fora a cláusula excludente, deveria ocorrer. Com efeito, estão em causa situações em que

só por via de tal exclusão é possível assegurar uma efetiva possibilidade de escolha a quem pretende decidir

como e quando termina a sua vida.

Mas a colaboração de um terceiro na disposição da vida de alguém é problemática, na medida em que

converte essa disposição no resultado de uma interação social; já não está em causa apenas uma atuação

individual de quem põe termo à sua própria vida (cfr. supra o n.º 29). Por isso aquela disposição da vida ganha

relevância jurídica e entra em conflito com a indisponibilidade e a inviolabilidade da vida humana – dimensão

objetiva do direito à vida consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição e fonte do dever estadual de

proteção deste bem jurídico. Recorde-se que «a interferência do terceiro converte o facto num facto pertinente

ao sistema social, estando como tal, exposto aos seus códigos e valorações» (v. Costa Andrade cit. supra no

n.º 29), que, no caso português, e em homenagem à inviolabilidade da vida humana, impõem, em regra, a

punição do terceiro por ilícitos próprios (concretamente: o homicídio a pedido da vítima e a ajuda ao suicídio).

Ora, a opção do autor do Decreto n.º 109/XIV foi a de afastar os casos previstos na norma do respetivo

artigo 2.º, n.º 1, de tais regras punitivas. Ciente da tensão entre o dever de proteção da vida e o respeito da

autonomia pessoal em situações-limite de sofrimento, aquela opção funda-se numa conceção de pessoa

própria de uma sociedade democrática, laica e plural dos pontos de vista ético, moral e filosófico. De acordo