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16 DE MARÇO DE 2021

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vividas pela pessoa como geradoras de perturbação ou angústia existencial, por não significarem uma doença

ou disfunção, dando como exemplo a dor da parturiente (The Nature of Suffering and the Goals of Medicine,

2nd ed., Oxford University Press, 2004, p. 34). Por outro lado, são frequentes os fenómenos de sofrimento

sem dor física, de que é exemplo o luto patológico, podendo inclusivamente envolver apenas a antecipação de

um evento futuro, tido como profundamente desagregador para a pessoa, ao invés do que sucede com os

processos decorrentes de estímulos nervosos gerados por algum lugar ou lugares do corpo. Para o autor, o

sofrimento pode ser definido genericamente como um estado de aflição severa, associado a acontecimentos

que ameaçam a integridade de uma pessoa. Exige consciência de si, envolve tanto as sensações como as

emoções, sofre uma influência profunda das representações sociais e das relações interpessoais. Enquanto

situação existencial de aflição grave, assume inevitavelmente uma dimensão holística, sofrendo a pessoa

como um todo, mesmo que o estado de sofrimento possa ter como sua raiz mais funda uma particular vertente

do ser-pessoa (emocional, fisiológica, espiritual ou outra).

Essa mesma visão do sofrimento transparece do Parecer n.º 107/CNECV/2020 do Conselho Nacional de

Ética para as Ciências da Vida, quando refere que «[o] sofrimento inclui experiências várias e polimórficas

(impotência, angústia, vulnerabilidade, perda de controlo, ameaça à integridade do projeto existencial).

Compõe-se de muitos elementos, somáticos e psicológicos, que são indissociáveis entre si e deterioram a

qualidade de vida, de modo tal que alguém pode mesmo sentir que não vale a pena viver» (p. 4).

Por assim ser, não parece haver dúvida de que a noção de sofrimento, eleito como pressuposto da

descriminalização de condutas agora compreendidas na previsão dos crimes previstos nos artigos 134.º e

135.º do Código Penal, e como critério de acesso à antecipação da morte medicamente assistida, assume

uma natureza eminentemente subjetiva, estando estreitamente associado à identidade pessoal de cada um,

ao modo como se organiza na sua vivência interior. E que, na respetiva identificação, o elemento informativo

mais relevante para o médico orientador e para o médico especialista, não pode deixar de ser o modo como o

doente manifesta e verbaliza o seu sofrimento, ou seja, a perspetiva individual do doente, podendo

estabelecer-se aqui uma analogia com a anamnese médica em contexto terapêutico, enquanto procedimento

fundamental para fazer o diagnóstico preciso e instituir as práticas terapêuticas mais adequadas às condições

clínicas do paciente, bem sedimentado nas leges artis. Recorde-se que o conceito de sofrimento é igualmente

acolhido no âmbito dos cuidados paliativos e em fim de vida, numa perspetiva de atuação mitigadora do

sofrimento, que pressupõe justamente a avaliação constante e criteriosa do mesmo, sem o que não será

possível aferir das possibilidades de assistência médica e medicamentosa.

42. Feito este percurso, demonstrada a forte dimensão de subjetividade do conceito de sofrimento, poderá

perguntar-se qual o sentido da exigência qualitativa que decorre do adjetivo intolerável. De facto, para

preencher o critério normativo complexo do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto n.º 109/XIV, não basta que o

peticionante sofra; é necessário que esteja em estado de sofrimento intolerável. Como, então, avaliar se o

sofrimento assume essa propriedade?

Argumenta o requerente que essa questão não encontra a devida resposta no sistema normativo instituído

pelo citado Decreto, ficando a concretização do conceito largamente dependente da decisão do médico

orientador e do médico especialista, privados de uma qualquer bússola orientadora, razão por que não se

mostraria satisfeito, nesse ponto, o teste da determinabilidade da medida legislativa.

Não é isso, todavia, o que sucede.

Afirmar que o sofrimento é um fenómeno privado – idiossincrático, único ao sujeito – não significa que

esteja à margem de qualquer objetivação, ou que seja inapreensível por terceiros, cingidos à aceitação acrítica

– meramente empática – do relatado na primeira pessoa pelo paciente.

Sem colocar em crise o essencial da visão personalista de Eric Cassell sobre as finalidades da medicina,

um conjunto importante de autores que se dedica à problemática do sofrimento, perspetivando os critérios de

elegibilidade para o acesso aos cuidados paliativos, com particular relevo para a sedação paliativa, e, também,

para a antecipação da morte assistida introduzida nos Países Baixos (em que é requisito o convencimento do

médico de que o sofrimento do doente é insuportável), aponta algumas limitações à orientação estritamente

subjetivista do autor. Contrapõe-lhe uma visão que não dispensa um referencial analítico de índole objetiva

(mesmo que negando a possibilidade de medir o sofrimento, ou estabelecer rigidamente diversos estalões, em

termos similares ou aproximados ao que sucede com a determinação do quantum doloris no âmbito da