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2 DE OUTUBRO DE 2024

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Acresce que muitas vezes o constrangimento causado pelo crime na vítima, a dificuldade em integrar o

sucedido, o receio de ter de voltar a enfrentar o agressor, a exposição pública da sua intimidade perante as

autoridades públicas e policiais e o receio da lógica de revitimização associada ao processo levam a que, nestes

casos, a/o ofendida/o acabe por preferir o silêncio e a impunibilidade da/o agressor/a à denúncia do crime e

impulso do processo penal. Comprovativo desta realidade são as estatísticas referentes ao crime de violação,

que nos demonstram que existem verdadeiras cifras negras nesta matéria.

Veja-se que o Relatório Anual de Segurança Interna referente ao ano de 2021, refere que «o crime de

violação teve um acréscimo relativo do número de inquéritos e confirmou-se a preponderância da relação de

conhecimento entre autor e vítima», acrescentando que «no que concerne às subidas, o realce vai para a

violação, que apresenta uma subida de 26 %».

Atendendo à situação referida, a consagração da natureza pública dos crimes contra a liberdade sexual, ao

retirar o impulso processual e toda a penosidade que lhe está associada do âmbito da vítima, garantiria uma

redução significativa das cifras negras associadas a estes crimes e daria, assim, um contributo para a redução

da ocorrência futura de muitos crimes desta natureza, quer pelo facto de, por um lado, a comunidade ver

reforçados os seus meios gerais de prevenção e sensibilização, quer, por outro lado, uma maior dissuasão dos

potenciais agressores relativamente a estes crimes. Sublinhe-se que a atribuição de natureza pública a estes

crimes não irá levar a condenações injustas, uma vez que na fase de inquérito e nas fases subsequentes do

processo o crime de violação será investigado de acordo com as regras gerais de imputação penal e as garantias

concedidas à defesa.

Importa, contudo, sublinhar que nos crimes contra a liberdade sexual, que integram a Secção I do Capítulo

V do Código Penal, é a liberdade sexual que se pretende tutelar, que, conforme afirma Paulo Pinto de

Albuquerque2, corresponde «à esfera mais íntima da personalidade», e que a consagração da natureza pública

destes crimes, ainda que de uma certa perspetiva reforce a proteção da vítima e possa contribuir para a redução

deste tipo de crimes, pode pôr em causa o bem jurídico tutelado nos casos em que a vítima fundamentadamente

não pretende fazer seguir o procedimento criminal. Relembre-se que o processo penal acarreta aspetos

negativos com forte impacto psicológico que não devem ser ignorados, dos quais se destaca a sujeição da vítima

a um penoso processo de revitimização, com a sujeição a exames médicos invasivos e inquirições que entram

na sua mais profunda intimidade, mas que são indispensáveis à investigação criminal.

Assim, qualquer alteração legal que atribua natureza pública aos crimes contra a liberdade sexual deverá

evitar cair no erro de fazer prevalecer obstinadamente o interesse comunitário na persecução penal sobre a

vontade da vítima e levar em conta estes aspetos negativos associados ao procedimento criminal e prever,

conforme defende a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima3 (APAV), uma válvula de escape através da qual

se possa dar voz à vítima e valorar a sua vontade.

Tendo em conta o anteriormente exposto e a necessidade de assegurar o pleno cumprimento da Convenção

de Istambul, com o presente projeto de lei, o PAN, como partido vinculado ao princípio da não violência e que

assume a linha da frente da defesa dos direitos das mulheres, propõe que todos os crimes contra a liberdade

sexual, à exceção do crime de importunação sexual de pessoas maiores de idade, passem a ter a natureza

pública, prevendo-se, contudo, e em linha com o que defendeu a APAV, que nos procedimentos iniciados pelo

Ministério Público relativamente a estes crimes contra pessoas maiores de idade a vítima possa, a todo o tempo,

requerer o arquivamento do processo e que tal requerimento só possa ser recusado pelo Ministério Público

quando, de forma fundamentada, se considere que o prosseguimento da ação penal é o mais adequado à defesa

do interesse da vítima e que o pedido se deveu a qualquer tipo de condicionamento por parte do arguido ou de

terceiro, caso em que deverá promover sempre a aplicação das medidas necessárias à sua proteção contra

eventuais retaliações ou coação.

Assim, com o presente projeto de lei o PAN pretende alterar o Código Penal por forma a assegurar a

consagração da natureza pública dos crimes de violação, de coação sexual, de fraude sexual, de abuso sexual

de pessoa incapaz de resistência e de procriação artificial não consentida.

Pelo exposto, e ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, a Deputada única

2 Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal, 2.ª edição, Universidade Católica Editora, 2010, página 556. 3 APAV (2018), Contributo da APAV referente ao Projeto de Lei n.º 1047/XIII/4.ª (PAN), página 10.