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18 DE MAIO DE 1991

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O juiz, para não denegar justiça, é, pois, compelido a substituir-se ao legislador, criando, para cada caso, a própria norma.

Traia-se, obviamente, de uma solução de último recurso. É que uma realidade será urna jurisprudencia criativa, a partir dc textos legislativos existentes, outra coisa será a forçada Substituição do legislador pelo juiz.

Com salientei em 1985, «os tribunais [...] redimensionam, à medida das pessoas, as categorias friamente lógicas e abstractas (da lei)». «Sc ao juiz não pertencerá, por certo, criar a lei, caber-lhe-á, seguramente, jusü ficar o Direito, numa intransferível vocação de 'descoberta' (Rechtsftndung) da sua decisiva intencionalidade. Resulta a identidade da norma da decisão judicial; [...] esta será o acto normativo mais imediato, enquanto mais próximo das pessoas [...]. Os rigores de uma jurisprudência 'mecânica* [...]; o aviso que, em 1846, Mourlon acautelava dc que 'un bon magistral humilie sa raison devant ccllc dc la loi* está cm definitivo arquivado. (Mas) não será de pender para o pólo oposto. A soberania normativa do juiz não deixará dc ser uma soberania 'vinculada'. Ao definir o Direito, dando causa â realização da Justiça, o juiz aplicará a lei; só que esta relação dc sujeição terá apenas o sentido de sobrestar a que o juiz se substitua ao legislador.» (19)

Ora é isto que, precisamente, acontecerá na situação actual.

8.2 — E como as soluções jurisprudenciais são diversas, sc terão dc continuar a sê-lo, difícil não será de antever que, num futuro próximo, haja lugar à emissão de um assento, já que no «domínio da mesma legislação» (que não 6 nenhuma) poderão vir a ser proferidos dois acórdãos com soluções opostas da «mesma questão fundamental dc direito». E a incongruência institucional já implícita no instituto dos assentos (que é específico do nosso sistema jurídico), num confronto comparatístico adensar-sc-á pela circunstancia dc, nesta hipótese, um órgão jurisdicional criar um preceito geral e abstracto, aplicável a todos os casos futuros, sem qualquer suporte legislativo. Sendo os assentos verdadeiras «disposições legislativas» (Barbosa dc Magalhães, Paulo Cunha, Manuel Rodrigues, Cabral de Moneada, Adelino da Palma Carlos, Castanheira Neves e, dc algum modo, Ferrer Correia, Pires dc Lima-Antuncs Varela e Oliveira Ascensão), estar-sc-á, dc uma forma imparmente caracterizada, perante o exercício da função legislativa por um poder que dela não é dotado.

O legislador não pode ficar alheio a esta incongruência.

9.1—Como é sabido, resulta a transexualidade (ou transcxualismo) da obsessão dc pertencer ao sexo oposto daquele a que a pessoa biologicamente pertence. O sexo psicológico não coincide com o sexo fisiológico e, no essencial, com o sexo anatómico, não obstante as intervenções medicamentosas e cirúrgicas realizadas.

Alcnie-se num caso específico, que culminou num acórdão do Supremo Tribunal dc Justiça.

A. demandou o Estado Português pedindo que fosse declarado icr hoje o sexo feminino, cancelando-sc a menção do sexo masculino constante do seu assento dc nascimento e ordenando-sc que se procedesse ao averbamento, nele, do seu novo sexo.

Tratava-se dc um indivíduo do sexo masculino que casara, tendo desse casamento nascido um filho. Tivera sempre, no entanto, desde a infância, um comportamento tendencialmente feminino.

Já adulto, sujeilou-se a tratamentos hormonais e a uma intervenção cirúrgica que lhe fez acentuar os caracteres sexuais secundários femininos, tendo o aspecto exterior de uma mulher. A sua profissão é a dc bailarina.

O processo foi decidido na 1.' instância (sentença dc 11 de Fevereiro de 1985 do juiz do 8." Juízo Cível, na Colectânea de Jurisprudência, 1985,1.1, p. 351) cm sentido desfavorável. A aparência morfológica imediata dc A. passou a ser a dc uma mulher, mas continua a ser portador dç um cariólipo masculino. Houve modificação dos seus órgãos sexuais, mas dela resultou que, agora, A. nflo apresenta quaisquer órgãos sexuais cxlcmos. O que conseguiu foi obter um pseudo-sexo.

9.2— Corroborando a sentença da 1.' instância entendeu a Relação dc Lisboa (Acórdão de 6 de Fevereiro dc 1986, na cit. Colectânea, 1986, t. iv, p. 123) que, «posto que com a aparência de mulher, com morfologia c perfil psicológicos mais próximos do sexo feminino, o A. nüo logrou vencer uma lei da natureza, continuando a pertencer ao sexo masculino».

E, como aliás já fizera o juiz da 1.' instância, transcreveu parte do parecer da Ordem dos Médicos, junto ao processo:

[...] a designada mudança dc sexo por processos cirúrgicos e hormonais, proposta c algumas vezes efectivada no caso de transexuais é cientificamente um erro c logicamente um contra-senso: procura-sc adaptar um corpo sexuado c uma função sexual normais a uma identificação errada c a uma identidade falsa; é, pois, uma intervenção patogênica. Quer dizer: cm vez de se tratar um psiquismo doente que não reconhece o corpo são, deforma-se este à doença psíquica [...1.

Cita o aresto da Relação, além disso, o Código Deontológico da Ordem dos Médicos dc 1985 (n.91 do artigo 54.9 e artigos 55." c 56.9).

9.3 — Decidiu no mesmo sentido o Supremo Tribunal dc Justiça (Acórdão dc 16 dc Novembro dc 1988, na Tribuna de Justiça, Abril-Maio dc 1990, p. 187), confirmando, pois, o acórdão da Relação.

Mas o certo é que seis dos juízcs-consclhciros votaram no sentido da procedência da acção, entendendo que o A. tem actualmente o sexo feminino.

Duas opiniões dissidentes são dc destacar.

Uma, do conselheiro Abel Delgado, actual Presidente daquele Supremo Tribunal.

Começando por definir a transexualidade como sendo, essencialmente, a discordância cmrc o sexo físico e o sexo psicológico, diz a propósito dos tratamentos c intervenções clínicas a que o A. se sujeitou:

[...] não se compreende que se dê importância aos resultados dos aludidos tratamentos e intervenções, porquanto é precisamente porque não foi alcançado o objectivo pretendido que o A. é um transexual; sc a discordância desaparecesse, lolalmcnie, desapareceria a transexualidade.

E lembra que alguns países já tomaram posição sobre o problema: a Itália (Lei dc 14 dc Abril dc 1982), a Suécia (Lei dc 21 de Abril dc 1972), a República Federal da Alemanha (Lei de 11 dc Agosto dc 1980) c a Holanda (Lei dc 1 dc Agosto de 1985).

Por outro lado, noutros países que ainda não produziram legislação sobre a matéria os tribunais já reconheceram a transexualidade, como a Espanha, a França, a Grécia, a Turquia c a Suíça.

No seu voto de vencido, o conselheiro Joaquim Gonçalves estabelece uma restrição; embora sendo dc opinião