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1434 II SÉRIE - NÚMERO 46-RC

Ora, parece-nos que, do ponto de vista de interpretação da Constituição, mas não do artigo 185.°, este preceito, na versão dada pela proposta de alteração do PCP, vem efectivamente complicar aquilo que já são as relações do Governo com os outros órgãos de soberania e que se depreendem claramente da leitura dos vários preceitos sobre a competência dos mesmos órgãos. Além disso, essa proposta de alteração ao referido artigo 185.° vem complicar, porque pode entender-se num plano de comparação com a redacção actual que este novo texto pode inviabilizar ou tornar mais difíceis certas relações de superintendência do Governo em relação a determinados órgãos da Administração, que até a esta altura não se colocavam com a presente formulação.

Finalmente, pergunto-lhe se isto não tem subjacente um juízo de equiparação no plano da função legislativa do Governo à Assembleia da República.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A proposta de alteração do artigo 185.° do PCP é uma proposta que à primeira vista poderia ser qualificada como uma benfeitoria sumptuária, se não raiasse mesmo os limites da benfeitoria luxuriante, tendo em linha de conta que tudo o que existe é sem prejuízo do que também existe nos mesmos termos em que o que existe, existe. E, nesse sentido, a questão crucial é saber se isto acrescenta alguma coisa de novo ou não, ou seja, se desta proposta resulta ou não um efeito útil. Foi, aliás, isto que o Sr. Deputado deixou um pouco na penumbra, mas que decerto não nos roubará o prazer de explicitar quando falar do alcance prático da proposta que se pretende agora ver aprovada.

Na verdade, existindo o princípio geral do artigo 114.° da Constituição referente à organização do poder político e consagrador da separação e da interdependência dos órgãos de soberania, é óbvio e evidente que a interdependência política estabelece o quadro de relações entre órgãos de soberania que definem um determinado sistema de governo, e a separação é característica de um sistema de governo democráctivo e do papel dos controles existentes dos checks and balances na caracterização desse mesmo sistema.

Portanto, o Governo exerce as suas funções sem prejuízo dos demais órgãos de soberania, assim como estes exercem as suas funções sem prejuízo das competências constitucionais do Governo. De facto, o Sr. La Palisse, se fosse um constitucionalista, não diria melhor!...

Ora, o problema que se coloca é o de saber qual a definição de governo que a Constituição nos dá. Creio que nos dá uma definição que passa por dois tipos de funções fundamentais: a função de direcção política do Estado e a de órgão com atribuições no domínio executivo. Enquanto função de direcção política do Estado, o Governo participa nela com os demais órgãos de soberania, desde logo o Presidente da República e a Assembleia da República. E, nesse sentido, o Governo é o órgão de condução da política geral do Estado, da política geral do País, sem prejuízo do concurso para a função de direcção política do Estado que a Constituição confere ao Presidente da República e à Assembleia da República. É, portanto, uma função do Estado que é partilhada por vários órgãos de soberania, cada um no âmbito da sua esfera de competência própria. Não há, pois, nessa perspectiva confusão possível entre a acção do Governo no quadro da função de direcção política do Estado e a acção do Presidente da República ou da Assembleia da República no âmbito dessa mesma função de direcção política do Estado.

O problema ganha, contudo, maior interesse se o equacionarmos nestes outros termos: a primeira expressão "sem prejuízo" contida na nova redacção do artigo 185.°, na versão da proposta de alteração do PCP, parece-me desnecessária, porque ela decorre do artigo 114.°, da lógica do sistema do Governo e de todos os princípios que enformam o Estado de direito democrático. A segunda expressão do mesmo teor inserida na referida proposta talvez já não seja desnecessária. E digo isto porque há a questão de saber se é necessário pára garantir de facto a independência da administração das regiões autónomas e das autarquias locais que esteja este inciso consignado no novo texto do artigo 185.º De facto, as normas cosntitucionais têm todas o mesmo valor e, nesse sentido, a circunstância de o Governo ser o órgão superior da Administração Pública não derroga os poderes de superintendência que sobre a administração das regiões autónomas têm os órgãos de governo próprio das regiões e sobre a administração local têm os órgãos das autarquias locais. Não pode haver nunca uma interpretação derrogatória de atribuições e a definição do Governo nunca poderia comportar tal consequência, tendo em linha de conta que esses princípios estão salvaguardados também na própria Constituição.

Ora, o que sejam os demais órgãos constitucionais independentes previstos na Constituição é que suscita algumas dúvidas na minha interpretação. Desde logo, por exemplo, o Provedor de Justiça é um órgão independente previsto na lei fundamental. Porém, perguntaria, então, o seguinte: qual será a compatibilização entre o estatuto do Provedor de Justiça e uma norma deste tipo? Provavelmente nenhuma!... E digo isto porque os serviços administrativos que apoiam o Provedor de Justiça estão dependentes, nos termos da lei, da Assembleia da República. Nesse sentido, é a lei que confere essa dependência.

Penso, então, que provavelmente o que se pretendia era salvaguardar o caso dos tribunais, mas esta questão está directamente resolvida expressamente na Constituição. Não vejo, assim, que tenha efeito útil por essa via. Portanto, o receio que tenho, além das doutas considerações que foram já expostas pela Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, é que mais do que questões do género daquela que colocou, venha este preceito a lançar confusão, em vez de clarificação. E a verdade é que este artigo 185.° tem uma redacção que surgiu da Lei Constitucional n.° 1/82, redacção essa cuidada e laboriosa, tendo em linha de conta a necessidade de definir quais são os limites da sua aplicação.

Não creio, pois, que se tenha suscitado qualquer dúvida de interpretação da aplicação do artigo 185.° da Constituição, desde essa lei constitucional. Portanto, não há dúvidas de aplicação e de interpretação do artigo 185.°, pelo que a primeira expressão "sem prejuízo" ínsita na proposta de alteração do PCP é des-