extradição. Isto, para, ao fim e ao cabo, se colocar o problema a propósito deste tema e também a propósito de outros, ou seja, a propósito da natureza da relação paramétrica entre certas disposições do Estatuto do TPI e certas disposições da Constituição. Uma é o caso da extradição, outra é o caso da questão da pena perpétua e outra ainda, como o Sr. Deputado Marques Guedes referiu, é o caso do regime das imunidades dos titulares de cargos políticos, maxime o problema da responsabilidade criminal do Presidente da República.
E perguntar-se-á: se estes são os fundamentos que demonstraram - e foi nesse sentido que os aludi na minha intervenção inicial - a necessidade da revisão constitucional, para permitir uma conformação das disposições constitucionais com a aplicabilidade do Estatuto do TPI, todos estes problemas se resolvem inserindo na Constituição uma cláusula geral de acolhimento do Estatuto do TPI? Esta é que é a questão técnico-constitucional sobre a qual teremos de tomar posição! E, aparentemente, pensamos que será assim que esses problemas se resolverão, porque, quer o vosso projecto, quer o nosso, foi exactamente assim que trataram a matéria.
Mas também poderíamos chegar à conclusão de que não bastaria a cláusula geral de acolhimento porque, onde em concreto se verificasse alguma desconformidade pontual, também aí teria de ser superada essa desconformidade pontual.
Se optássemos por esta segunda interpretação, quase teríamos de reconhecer que, praticamente, não faria sentido inserir na Constituição uma cláusula geral, porque estaríamos, de alguma maneira, a confessar em termos de técnica do valor dessa cláusula geral de acolhimento que ela não resolveria os problemas pontuais de desconformidade e que, portanto, ou a cláusula geral teria um valor meramente proclamatório ou seria inteiramente superabundante.
Ora bem, não é essa a minha interpretação. A minha interpretação é a de que esta cláusula geral valerá como norma especial que, no quadro de uma interpretação sistemática da Constituição, permitirá derrogar as normas da Constituição que, no caso concreto, se revelarem desconformes ao Estatuto do TPI. Interpreto esta cláusula geral como cláusula de valor especial com este significado interpretativo. E suponho mesmo que é esta a interpretação que deveremos consolidar nestes trabalhos da revisão constitucional para superar todas as dificuldades.
Com isto passo à própria dificuldade que o Sr. Deputado António Filipe me pediu para comentar, dizendo exactamente como é que se faria a compatibilização desta cláusula geral de acolhimento com regras da Constituição desconformes com o Estatuto do TPI, eventualmente as do regime da extradição. Para mim, esta compatibilização far-se-á neste exacto sentido que acabei de referir, ou seja, considerando que a cláusula geral é uma norma especial que, no quadro sistemático da Constituição, prevalece sobre outras normas desconformes ao Estatuto do TPI. Penso que temos que dar uma interpretação clara sobre esta questão, até para não ficar qualquer resquício de dúvida no final deste processo sobre qual é a nossa atitude de boa fé no momento em que aprovamos a Convenção.
Sabemos que a boa fé é uma questão relevante do regime da aprovação dos tratados, de acordo com as Convenções de Viena sobre os tratados, e que um Estado que aprove para valer na sua ordem interna um qualquer instrumento de Direito Internacional o deve fazer em condições de garantir que a sua ordem interna não venha a implicar ou impedir a plena aplicação das normas do Direito Internacional. No nosso caso, na relação paramétrica entre Direito Internacional e direito interno, o problema nunca se põe na relação das normas de Direito Internacional com as normas ordinárias, porque aí, como sabemos, em caso de desconformidade, prevalece a norma do Direito Internacional. E é por isso que estamos relativamente à vontade até quanto à definição do elenco dos tipos legais de crime previstos no Estatuto do TPI, questão que também foi aflorada nas perguntas do Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
Digo isto porque aí se torna evidente que se, eventualmente, na conformação do tipo legal de crime no quadro do Estatuto do TPI alguma coisa se revelasse desconforme, ou, melhor, não conforme com uma norma interna do nosso direito ordinário e, eventualmente, do nosso Direito Penal, desaplicar-se-á a norma interna do Direito Penal para prevalecer a conformação normativa constante do Estatuto do TPI, enquanto norma de Direito Internacional que é e, portanto, prevalecendo sobre a norma de direito interno na relação paramétrica. Mais: mesmo no caso de omissão do nosso direito ordinário, o aplicador interno, particularmente em sede jurisdicional, poderá sempre aplicar as normas constantes do Estatuto do TPI, porque, a partir do momento da sua entrada em vigor, elas são aplicáveis na nossa ordem interna sem qualquer dificuldade.
Não acompanho, por isso, algumas preocupações que foram manifestadas até agora, dizendo que nós não só teríamos de cuidar da prioridade da revisão constitucional como de uma espécie de prioridade de adaptação dos textos da lei ordinária quanto à definição dos tipos legais de crime no Código Penal ou em quaisquer outros instrumentos de natureza processual. Não vejo que essa prioridade exista, porque, a partir do momento da entrada em vigor do Estatuto do TPI e da sua aplicabilidade na ordem interna, ela aplica-se sem problemas e, em caso de desconformidade, aplicar-se-á o Direito Internacional com desaplicação da norma interna.
Como não é assim, manifestamente, no que diz respeito à norma da Constituição - porque aqui, sim, de acordo com as regras do artigo 8.º, prevalecerá a norma constitucional sobre a norma do Direito Internacional -, aqui é que o problema da desconformidade é sensível. Ora, aqui é que volto ao ponto de há pouco, dizendo que entendo que a cláusula geral de acolhimento do Estatuto do TPI deve ter o significado constitucional de uma norma especial que, na interpretação sistemática da Constituição, deve prevalecer sobre quaisquer outras normas da Constituição que sejam desconformes ao disposto nesse mesmo Estatuto e, obviamente, para esses efeitos exclusivos.
Dito isto, de alguma maneira, o meu ponto de vista sobre a questão que o Sr. Deputado Fernando Seara me colocou já está dado e penso que não é por esta matéria de inserção sistemática que me vou bater num sentido ou noutro. Quero apenas contribuir para que a solução final a que cheguemos seja aquela que partilhemos com uma ponderação consensual estabilizada entre todos nós e não levantarei aqui qualquer espécie de dificuldade.
Como tal, pela mesma ordem de razões, a mesma resposta darei ao Sr. Deputado Guilherme Silva. Peço desculpa aos Srs. Deputados se tiver deixado alguma coisa por clarificar, mas não foi esse o meu propósito.
O Sr. Presidente: - Teremos ocasião, ao longo das discussões, de aprofundar todos estes temas, Sr. Deputado.