para, nos termos do próprio Estatuto, realizar, através dos tribunais portugueses, o julgamento desses cidadãos, aplicar-lhes penas e, deste modo, evitar a "entrada em cena" do Tribunal Penal Internacional; ou os nossos tribunais, por alguma razão, são obrigados a declararem-se incompetentes relativamente a determinado tipo de práticas criminosas e, por se declararem incompetentes, vêem-se na contingência de entregar esses cidadãos à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, com todas as possíveis consequências que daí advenham - possíveis, porque é evidente que até ao final do julgamento tudo é possível.
Portanto, o que está aqui em causa, Sr. Professor, é a necessidade de habilitar os tribunais portugueses de forma a nunca serem colocados na situação de terem de se declararem incompetentes em razão, nomeadamente, da tipificação de crimes. O Sr. Professor bem sabe que o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, para além de, relativamente a alguns crimes, como o de genocídio e os crimes contra a humanidade, ir manifestamente mais longe em termos de tipificação de comportamentos susceptíveis de integrarem a prática criminosa, ir bastante mais longe do aquela que é a tipificação decorrente do Código Penal português, contém, no caso dos crimes de guerra, por exemplo, uma densificação da tipificação dos comportamentos que está muito para além daquilo que está previsto na ordem jurídica portuguesa.
Assim, se, de hoje para amanhã, um cidadão for encontrado no território nacional, sob alçada dos tribunais portugueses, e estiver indiciado pela prática de um crime que vem tipificado no Estatuto de Roma, mas relativamente ao qual é totalmente omisso o Código Penal português, não restará aos tribunais portugueses outra solução senão a de, por terem de se declararem incompetentes para julgar aquela matéria, entregar o cidadão à jurisdição do Tribunal Penal Internacional. A única forma de obviar essa situação é habilitar os tribunais portugueses com uma tipificação de crime que lhes permita, em todas e quaisquer circunstâncias em que haja indiciação por parte do TPI, considerarem-se competentes e, portanto, poderem, eles próprios, avançarem com o julgamento da situação. Esta é a primeira questão.
Em segundo lugar, e independentemente de o Sr. Professor saber, seguramente melhor do que eu, mas também melhor do que praticamente todos nós, quais são os mecanismos de aplicação directa do direito internacional na ordem interna, gostaria de abordar a questão relativa ao problema das imunidades que decorre da adesão ao Tribunal, que o Sr. Professor citou por alto e que quero colocar-lhe em concreto: trata-se do problema do julgamento do Presidente da República. Como o Sr. Professor bem sabe, este é o único caso em que a nossa Constituição tem expressamente uma norma, no artigo 130.º, que estabelece que, em determinado tipo de situações, o Presidente só responde, em primeiro lugar, perante o Supremo Tribunal de Justiça e, temporalmente, em alguns casos, só responde depois de terminado o seu mandato.
Como tal, gostava de saber se, por causa deste problema do Presidente da República, o Sr. Professor entende que a recepção genérica do Estatuto do Tribunal Penal Internacional resolve este problema de violação ou de incompatibilidade com o artigo 130.º da Constituição ou se entende haver aqui algum trabalho a fazer, em termos de excepcionar expressamente esta questão relativamente ao mesmo artigo.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, já temos entre nós o Sr. Prof. Jorge Miranda, que me comunicou a sua dificuldade em permanecer cá para além do meio-dia. Ora, nós é que começámos a reunião tarde, pelo que nós é que somos os responsáveis pelo atraso.
Como tal, dou a palavra ao Sr. Deputado Jorge Lacão, com o pedido de que seja célere.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, vou procurar acolher a sua recomendação, mas não sem saudar vivamente a presença do Sr. Prof. Fausto Quadros e a sua estimulante reflexão para o nosso próprio trabalho e que, asseguro-lhe, muito contribuirá para o processo de amadurecimento que aqui nos compete fazer.
Como o Sr. Presidente sugere que seja telegráfico, devo dizer que, relativamente à problemática da igualdade de direitos políticos no espaço lusófono, acompanho as reflexões feitas pelo Sr. Professor, na medida em que, por um lado, o papel pioneiro de Portugal na construção desse espaço lusófono faz todo o sentido, sendo que, por outro lado, não deixa de haver questões delicadas, do ponto de vista do exercício de direitos, nos termos em que o Sr. Professor referiu. Como tal, quero apenas sinalizar o quanto acompanhámos a sua reflexão.
No que respeita ao problema da recepção da cláusula relativa à possibilidade do reconhecimento do Estatuto do TPI, também me pareceram francamente pertinentes as observações do Sr. Professor, tanto mais que esta problemática da relação de complementaridade entre o TPI e a ordem jurídica interna tem-nos vindo a colocar aqui questões que tenderiam mais a complicar do que a simplificar o nosso processo. A ideia de que teríamos de acorrer rapidamente para a compatibilização da nossa ordem interna penal, relativamente à tipologia dos crimes - e, como sabemos, nem todos estão já tipificados, designadamente o crime de agressão -, no que respeita ao Estatuto do TPI, implicaria levar às últimas consequências uma ideia que o Sr. Professor aqui nos demonstrou não ser inteiramente correcta, que é a ideia de uma complementaridade quase necessária do TPI relativamente à nossa ordem interna, com prioridade de aplicação da jurisdição penal portuguesa.
O Sr. Professor lembrou-nos, até por uma razão de previsão, numa visão prospectiva, que, porventura, a conexão que poderá ocorrer do nosso lado com o TPI há-de ser se, um dia, for encontrado no território de Portugal alguém que deva ser julgado pela prática dos crimes que constam justamente do elenco dos crimes previstos no Estatuto do TPI. Se, nessa circunstância, nos vinculássemos, em sede constitucional, à ideia de que o Estatuto do TPI é complementar relativamente à jurisdição penal portuguesa, tal significaria que estávamos a vincular o Estado português à necessidade de, em primeira mão, julgar aquela pessoa apanhada em território português e só depois, se o próprio TPI admitisse não se conformar com a decisão penal portuguesa, é que haveria um eventual segundo momento de julgamento em sede de TPI.
Ora, isto não faz muito sentido, porque, do meu ponto de vista, Portugal tem de estar em situação de assegurar que, nas condições que o Sr. Professor referiu, se um cidadão for demandado pelo TPI, ele poderá ser-lhe entregue imediatamente, sem nos envolvermos numa imensa querela acerca da complementaridade, em termos de, necessariamente e por vinculação constitucional, a ordem jurídica penal portuguesa ter de actuar em primeira mão. Isso parece-me uma maneira de complicarmos a nossa relação com o TPI que é inteiramente injustificada. Nesse