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508 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 86

O Sr. José Cabral: - Eu queria que ficasse estabelecido que não foi a influência do direito canónico, nem da Igreja, que levou à abolição da pena de morte, pois que os seus doutores a admitem.

O Sr. Carlos Borges: - Basta lembrar os autos de fé.

O Sr. José Cabral: - Não posso deixar de responder ao aparto do Deputado Sr. Dr. Carlos Borges, porque só o não fizesse poderia alguém pensar que os autos de fé eram da responsabilidade da Igreja. Estes fizeram-se largamente nos velhos tempos, porque a organização do Tribunal da Inquisição foi absorvida pelo Estado e posta ao serviço dos Príncipes, isto é, do mesmo Estado.

O Sr. Presidente: - Peço a V. Ex.ªs que não interrompam o orador.

O Sr. Carlos Borges: - Aprecio muito estas lições de história, mas devo dizer que já conhecia o que o Sr. Deputado José Cabral acaba de dizer e que, no fundo, estamos de acordo.

O Sr. José Cabral: - Sr. Presidente: se V. Ex.ª me permite, será apenas mais um momento.
Onde a Inquisição floresceu e onde viveu, sempre sob as vistas imediatas do Papa, foi em Roma, mas nunca aí se fez nenhum auto de fé.

O Sr. Botelho Moniz: - Estatismo a mais e religião a menos. E peço que isto fique registado no Diário das Sessões, porque sou contrário ao excesso de estatismo.

O Orador: - Os princípios de direito canónico não admitiam a pena de morte...

O Sr. José Cabral: - Só a admitiram alguns doutores da Igreja como excepcionalíssiina excepção, se a expressão é permitida.

O Orador: - «A História ensina-nos que o emprego da pena de morte foi universal: encontra-se em todos os povos e em todas as épocas. Só ultimamente se sonhou em aboli-la em alguns Estados; mas, destas resoluções, umas não prevaleceram e outras são ainda projectos», escreveu Rossi, há cem anos, no seu Tratado de Direito Penal. E acrescentou que ela resistiu às maiores crises que a civilização tem sofrido: emigração dos povos, mudança de religião, revoluções políticas, nada a destruiu; concluindo que, por isto, t>e explicava a sua existência quase universal ainda nos tempos que decorriam.
Foi realmente geral entre os povos.
Podemos atribuir o fenómeno um pouco ao desprezo pela vida, pela pessoa humana, criado nos espíritos por frequentes guerras de conquista. A tal ponto que o castigo por sofrimento era tudo e a morte quase nada. Não é ela, afinal, uma lei da vida? ... Este desprezo explica que, no século XI, Guilherme, O Conquistador, ao mesmo tempo que abolia a pena de morte, mandasse arrancar das órbitas os olhos dos condenados !
E nem sempre se desperdiçava o sangue do suplício. Ainda não há cem anos era crença em algumas regiões da Suécia que certas doenças, e especialmente a epilepsia, se curavam tragando o sangue quente dos degolados; e, para isto, os enfermos aglomeravam-se â volta do cadafalso, como perante uma ara milagrosa. Talvez os ilustres médicos aqui encontrem um dos primeiros passos na descoberta das maravilhas da transfusão ...

O Sr. José Cabral: - Isso melhorou um pouco, porque agora, quando se aplica a pena de morte, em alguns
casos pelo monos, não se faz sofrer tanto os condenados o tem-se a gentileza de os queimar e de espalhar ao vento as suas cinzas, não vão elas, ainda, servir do veículo às ideias dos homens imolados...

O Orador: - Sr. Presidente: são fundadas as razoes dos que condenam a pena de morte.
Disse há tempo o ilustre Prof. Beleza dos Santos, nas notáveis lições de intercâmbio universitário, que as penas, mesmo as mais severas, devem sei justas e humanas e ter um limite, porque a sua crueldade pode servir ti e estímulo aos criminosos.
Podemos acrescentar que a crueldade da pena estimula a reacção afectiva, a solidariedade ou a revolta, fazendo esquecer o crime e converter o criminoso em vítima, em «mártir» do Estado.
As penas devem ter unicamente a severidade indispensável à garantia da defesa social; e a pena de morte, porque é irreparável e, portanto, condenada pela própria possibilidade do erro judiciário, contraria os princípios cristãos e de justiça social. Henriques Seco aponta-nos, na sua Miscelânea, casos de erro verificados depois da execução dos condenados.
Ainda se a execução dos justiçados fosse simbólica, como sucedeu ao Prior do Grato, que foi arrastado em estátua com pregão e baraço, não viria mal ao Mundo ... Não seria repugnante a missão do carrasco, do «ministro das execuções», como lhe chamaram.
Em Portugal a pena de morte era estabelecida ainda no Código Penal de 1852; mas o Acto Adicional do mesmo ano aboliu-a nos crimes políticos e a notável reforma penal de l de Julho de 1867, que lançou as bases do regime penitenciário, suprimiu-a nos crimes comuns, substituindo-a pela de prisão celular perpétua. Posteriormente, a reforma de 14 de Junho de 1884 convolava a pena de morte nas penas temporárias ainda hoje estabelecidas no velho Código de 1886. E é interessante salientar que, conforme se revela no relatório da reforma de 67, há muito tempo a pena de morte não era executada, e, portanto, a sua expressão legal limitou-se a vir ao encontro de uma expressiva realidade. «A pena de morte estabelecida pelo Código Penal - diz o relatório - foi raras vezes aplicada, deixando, afinal, de ser posta em execução muito antes de revogada».
Nas colónias foi abolida por decreto de 9 de Junho de 1870.
Vê-sc que para abolir a pena de morte, como as demais penas cruéis ou as. perpétuas, não foi necessário implantar a República em Portugal.
A Constituição actual, como as anteriores, apenas admite a pena de morto em tempo de guerra e só para ser executada em campanha. Compreende-se a excepção.
Caminhamos, pois, na frente, da frente mesmo da democracia brasileira. A sua Constituição determina que imo há penas corporais perpétuas, mas, além dos casos previstos na legislação militar, admitia já antes da lei constitucional de 16 de Maio de 19:38 e admite a pena de morte em crimes políticos e comuns, que vão desde a tentativa de submissão do território nacional ou de parte dele à soberania do Estado estrangeiro até ao homicídio cometido por motivo fútil e com extremos de perversidade.
E esta a realidade portuguesa, respeitada, mantida e mesmo beneficiada quanto às demais garantias individuais nas duas décadas agora completadas.
Lastimável é, porém, que, desde o raiar do século XX a fera humana, deixando germinar no peito a semente do ódio e soltando os seus instintos, tantas vezes atraiçoasse a benignidade da lei e os sentimentos da Nação pela prática do que chamavam a «acção directa» ou