80 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.° 119
Tive a coragem de vir a esta tribuna cumprir aquilo que julgo ser o meu dever, sem ter o intuito de agradar ao Governo ou ao povo, pois só me importa agradar à minha consciência.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Sr. Mário de Figueiredo: - Sr. Presidente: sinto-me sempre embaraçado quando subo os degraus desta tribuna, mas hoje confesso a V. Ex.ª que me sinto mais do que embaraçado, porque me sinto roubado.
Efectivamente gastei uma meia dúzia de horas a elaborar um esquema que aqui tenho em quatro linguados e no qual se contém o sumário do discurso que eu queria fazer na generalidade da discussão da lei de meios. E a verdade é que este esquema foi trilhado, foi percorrido pelo nosso querido, fogoso e inteligente colega Sr. Bustorff da Silva.
De sorte que quase me sinto sem matéria, sem conteúdo para o discurso que me proponho, através de tudo e apesar de tudo, proferir.
O meu embaraço é tanto maior quanto é certo que tenho de proceder neste momento a um processo de reelaboração, de sorte que nem suspeito de como as coisas irão ser arrumadas no movimento do meu discurso.
Tenho aqui, como primeiro número do meu esquema, o artigo 9.º da proposta. Era o primeiro número do esquema do Dr. Bustorff da Silva. Não tenho então nada que dizer a propósito?
É claro que não vou cansar V. Ex.ªs repetindo as considerações a respeito feitas pelo Dr. Bustorff da Silva, que, apesar de brilhantes, repetidas logo a seguir, haviam necessariamente de cansar. Não tenho então nada que dizer a respeito do artigo 9.°? Tenho, creio que sem repetir o Dr. Bustorff da Silva. Disse-se aqui, na discussão da generalidade - e não foi só o Sr. Dr. Pacheco de Amorim quem o disse - que o artigo 9.° era um cheque em branco que a Assembleia entregava ao Governo.
Eu digo que se realmente do artigo 9.° se pode dizer que contenha um cheque em branco, esse cheque já é passado pela nossa orgânica constitucional.
Faço estas considerações precisamente para mostrar a VV. Ex.ªs que a razão profunda do artigo 9.°, na proposta da lei de meios deste ano, não foi o passar um cheque em branco que permita ao Governo lançar adicionais sobre as contribuições gerais do Estado.
A razão deve ter sido outra. Vamos a ver se se descobre.
Segundo o nosso Direito Constitucional, há que manter o equilíbrio das contas e, portanto, se em certo momento da gerência, começa a verificar-se quebra de receitas tal que esse equilíbrio não se possa atingir, o Governo pode recorrer por força de disposição constitucional, ou melhor, deve recorrer, ao abrigo de disposição constitucional, ao decreto-lei, para buscar as receitas que hão-de de equilibrar as contas do Estado.
Nesta ordem de ideias, posso afirmar que, se realmente há cheque em branco, esse cheque resultou, não da disposição do artigo 9.° da lei de meios, mas da nossa própria orgânica constitucional.
Outra coisa se viu - e agora é que foi só o Sr. D r. Pacheco de Amorim - no artigo 9.° O que foi?
Isto: ele é a expressão de um certo estado de ânimo do Governo. Apareceu-lhe no horizonte a perspectiva de, em consequência da alta, dos preços, não poder manter-se o equilíbrio orçamental ou das contas. Daí o ter-se munido da possibilidade de, através de adicionais aumentar as receitas. E, assim, é o próprio artigo 9.º que vem prevenir-nos de que, na verdade, no horizonte aparece clara a nuvem da inflação. Com efeito, se os preços sobem, os despesas do Estado sobem, o equilíbrio rompe-se ou pode romper-se. E daí a autorização, ou, numa fórmula rápida e breve: daí o cheque em branco.
É possível, com boa vontade, tirar da disposição o que acaba de dizer-se. Agora, para se ver que da disposição não se pode concluir que essa ideia corresponde a um certo estado de ânimo do Governo, vou demonstrar que dela também é possível tirar precisamente o contrário. Não é difícil e não estou a tentar formas de raciocínio paradoxais. Com efeito, se a inflação torna ou pode tornar mais volumosas as despesas do Estado, a deflação pode contribuir para uma diminuição de receitas.
Para pôr isto com clareza vou raciocinar com elementos fornecidos pela própria exposição do Sr. Dr. Pacheco de Amorim.
Deflação, não sendo muito suave, significa falências e desemprego, quer dizer, significa diminuição da massa tributária e, portanto, diminuição de receitas que pode comprometer o equilíbrio orçamental ou das contas.
Não pode, pois, da disposição do artigo 9.° concluir-se que ela exprima estado de ânimo do Governo no sentido de que nós vamos assistir a um movimento de alta dos preços. Porque é então que se ressuscita uma disposição que tinha caído em 1940? O nosso colega Bustorff da Silva mostrou que disposição correspondente aparecia nas leis de meios desde 1999. Não apareceu na do corrente ano. Porquê?
Eu estou em crer que foi precisamente para se buscar o ensejo, o quadro, para as últimas palavras que aparecem naquele artigo e que são:
Fica o Ministro das Finanças autorizado a... «reduzir ou suspender dotações orçamentais e condicionar, da acordo com os interesses do Estado ou da economia nacional, a realização de despesas públicas ou de organismos e entidades subsidiados ou comparticipados pelo Estado».
Quer dizer: fica o Ministro das Finanças autorizado a dirigir as aquisições a fazer pelos serviços públicos ou pelas empresas subsidiadas ou comparticipadas. Muitas dessas aquisições terão de fazer-se no estrangeiro e para dirigir o sentido das importações e evitar a delapidação das nossas reservas em mercadorias que não sejam de uma utilidade evidente é que aparece o artigo 9.° da lei de meios!
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Continuando: tenho aqui agora, no meu sumário, uma outra rubrica, que se lê assim: «inflação ou deflação?».
Vou começar por dizer a VV. Ex.ªs a razão por que inscrevi esta rubrica.
VV. Ex.ªs já conhecem, através dos discursos proferidos, o que se passou no domínio dos factos.
De todas as considerações, sempre tão brilhantes, sempre tão impressivas, eu ia a dizer - mas não em termos de menos afecto - tão insidiosas, sem que a palavra possa ligar-se qualquer sentido pejorativo, porque elas são insidiosas pela própria sedução do movimento do raciocínio, feitas pelo Sr. Dr. Pacheco de Amorim, o que pode concluir-se?
Melhor: qual é o alvo para que apontam essas considerações?
Suponho. Sr. Presidente, não me enganar dizendo que o alvo é este: nós estamos em presença de um nível de preços que não pode manter-se E não pode manter-se porque - diria o Sr. Dr. Pacheco de Amorim - não pode manter-se o desequilíbrio existente entre o nível dos preços e a massa da circulação. E como esse desequilíbrio é evidente, e o volume da circulação há-de, pelo menos, manter-se como está, os preços hão-de também fatalmente subir.