11 DE DEZEMBRO DE 1992 691
relacionado com o conceito de Estado moderno, tal como foi teorizado a partir do século XVI, quando esta entidade constituía o centro autónomo, primordial e exclusivo das relações internacionais. Contudo, é preciso levar em linha de conta a transfiguração operada neste conceito e sobretudo aquela que foi operada no século XX, muito em particular após a 2.ª Guerra Mundial.
A segunda metade do presente século assistiu ao despontar de importantes organizações- internacionais de carácter político, económico, cultural, ambiental, defensivo, etc. Assistiu, igualmente, ao nascimento de comunidades supranacionais e a movimentos cada vez mais intensos, à escala planetária, a favor de uma crescente cooperação internacional, em todos os domínios. Aquelas entidades e estes movimentos deram origem a que o conceito de Estado moderno entrasse em crise, na medida em que ele deixou de ser - e sê-lo-á cada vez menos - o centro autónomo, primacial ou exclusivo das relações internacionais. A nova faceta das relações internacionais, na qual a interdependência dos Estados é crescente, quer jurídica, quer política, quer económica, quer mesmo ideologicamente, teve como mais importante consequência o desaparecimento da plenitude do poder estatal e foi esta plenitude que, ao longo dos últimos séculos, constituiu o atributo essencial da soberania.
O exemplo mais flagrante do desaparecimento desta plenitude do poder estatal reside no advento das comunidades supranacionais, cujo objectivo se traduz sempre numa limitação, quer interna quer externa, ao exercício de poderes soberanos dos Estados membros. Há outros exemplos que demonstram à saciedade quão ilusória é a invocação do argumento clássico da soberania, que já não reflecte a mesma realidade política que reflectia há 50 anos atrás: por exemplo, o poder soberano de emitir moeda, tantas vezes aqui invocado, é hoje ilusório e limitadíssimo, se atendermos, por um lado, ao poder das administrações autónomas e das empresas públicas de decidir acerca das despesas ou, por outro lado, ao poder de facto que já hoje resulta da preponderância de uma moeda dominante à escala europeia, como é o marco, cujos ajustamentos arrastam inevitavelmente - sem qualquer válvula de segurança soberana - ao ajustamento das moedas dos países economicamente mais fracos.
Vozes do PSD: - Muito bem!
O Orador: - Atente-se a um caso que nos toca directamente num outro domínio: antes de integrar qualquer organização internacional de defesa, Portugal tinha o exclusivo do comando soberano sobre as suas Forças Armadas. A partir do momento em que aderiu à NATO, aceitou partilhar com outros países o exercício da sua soberania neste domínio, sobre a pane das suas Forças Armadas que venham a ser adstritas à NATO em caso de guerra. Igualmente, passa a compartilhar competências soberanas sobre Forças Armadas de outros países que integrem a mesma organização. A crise do Estado moderno provocou a erosão do conceito clássico de soberania, na medida em que alguns dos atributos que a caracterizavam deixaram de ser exercidos, exclusiva e autonomamente, pelos Estados nacionais. Digo «exercidos» propositadamente, por que é a modalidade do exercício da soberania e não a titularidade- no nosso caso concreto e nos termos da Constituição inalienável - que está em causa.
Vozes do PSD: - Muito bem!
O Orador: - Actualmente, em todos os domínios da vida dos povos se verifica uma tendência neste sentido. É este, igualmente, Srs. Deputados, o sentido da União Europeia. Com ela Portugal não perde soberania. Partilha, sim, o seu exercício com outros Estados e essa partilha é uma relação biunívoca, na medida em que Portugal passa a exercer competências soberanas que não exercia, que também têm repercussão na esfera jurídica e política de outros Estados. O conceito de soberania que tantos invocam corresponde, pois, a um conceito ultrapassado, que já não tem vigência efectiva em nenhum Estado da actualidade.
Mas devem, ou não, as matérias que, de uma forma ou de outra, têm de ver com a soberania, e deveria esta, em particular - o Tratado de Maastricht -, ser submetida a um referendo popular? Continuando a raciocinar na base dos princípios que desde sempre regeram a maioria dos países do continente europeu, afirmamos que não. E explicamos porquê: o referendo é o principal instrumento de democracia directa, já que, por seu intermédio, o corpo eleitoral participa sem intermediários ou representantes no processo decisório.
Foi nos primeiros anos deste século, após a consolidação da democracia, que o referendo teve de forma decisiva os seus primeiros defensores. Após a 2.ª Guerra Mundial, mantendo-se embora vivo o espírito referendista, assistiu-se à sua racionalização, o que resultou, essencialmente, da crescente complexidade da actividade estatal. O referendo passou a ser defendido como sendo adequado para dar respostas concretas a questões igualmente muito concretas, e geralmente de fácil apreensão, em relação às quais se supunha que uma comunidade política estava dilematicamente dividida - a este respeito ainda hoje algumas Constituições, como a italiana, não permitem a realização de referendos relativamente a matérias votadas por dois terços do Parlamento, já que, quanto a elas, se pressupõe a existência de um amplo consenso social. E foi assim que aconteceu, como se lembram, com as alterações pertinentes à nossa Constituição que têm a ver com a ratificação do Tratado de Maastricht.
Sempre que a utilização do referendo saiu daquele quadro, o seu sentido foi pervertido. Os casos mais evidentes são a forma como De Gaulle os utilizou na V República, sempre com o fim último de demonstrar a sua superioridade sobre as restantes forças políticas, que levaram ao descrédito do referendo em França a à sua transformação em instrumento plebiscitário. Ou as vicissitudes por que o referendo passou em Itália, entre 1974 e 1981, em que o pronunciamento popular referendou sempre uma coisa completamente diversa da decisão sobre o problema que lhe era colocado.
O referendo mais exemplar a este respeito foi o do divórcio, que se transformou num campo de batalha entre as formações políticas, à margem do problema que deveria ser discutido, que era o da dissolução do matrimónio.
Ressalvada a experiência dos países nórdicos e da Suíça, quase sempre na tradição do continente europeu na qual nos integramos, os diversos regimes do referendo excluíram a possibilidade de serem submetidas a consulta popular as decisões mais intimamente relacionadas com o exercício da soberania.
É assim que estão excluídas normalmente desse procedimento as seguintes matérias: a ratificação de tratados e convenções internacionais; a ratificação das decisões - que é importantíssima - de fazer a paz ou a guerra (já se pensou que estas matérias têm a ver, de uma forma dra-