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20 DE JULHO DE 1996

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A observância do regime do segredo do Estado cabe à Assembleia da República, junto da qual funciona uma Comissão para a fiscalização do segredo de Estado, a quem cabe zelar pelo cumprimento da respectiva lei. A ela lhe compete apreciar as queixas que lhe sejam dirigidas sobre dificuldades ou recusa no acesso a documentos e registos 'classificados como segredo de Estado e sobre elas emitir parecer.

Refira-se como norma fundamental que o regime do segredo de Estado não é aplicável, quando para a realização dos mesmos fins forem suficientes formas menos estritas de reserva de acesso à informação.

Como complementares normativos aos diplomas legais invocados, são de destacar o artigo 343.° do Código Penal e o artigo 137.° do Código de Processo Penal. O primeiro versa sobre a violação do segredo de Estado, o segundo sobre a inquirição de testemunhas sobre factos, que constituem segredo de Estado.

A completar esta resenha, cumpre informar que ainda recentemente os nossos tribunais foram confrontados no denominado caso GAL — Grupos Antiterroristas de Libertação, com a invocação do segredo de Estado por parte de algumas testemunhas. Invocação essa, que conforme é do conhecimento público, causou inúmeras e variadas reacções, chegando mesmo a questionar-se a bondade da sua admissibilidade no referido caso.

Não se sabe se actualmente fará ainda grande sentido a dicotomia relações internas/relações internacionais, na repartição da incidência do segredo de Estado. É que em causa está o comportamento de um Estado em relação a algumas matérias com importância e reflexo na sua independência, unidade e segurança.

Não se desconhece contudo que foi ao nível das relações internacionais que maiores dificuldades se puseram à articulação do regime do segredo de Estado com os princípios norteadores de um Estado democrático.

A realização durante a primeira guerra mundial de um sem número de tratados secretos, levou a que no artigo 18 do Pacto da Sociedade das Nações se estabelecesse o seguinte:

Qualquer tratado ou compromisso internacional de qualquer membro da Liga deve ser imediatamente registado no Secretariado e deve, tão cedo quanto possível, ser por este publicado. Nenhum tratado ou compromisso internacional será obrigatório até ao registo.

Depois da segunda guerra mundial, de novo a Carta das Nações Unidas, no artigo 102, voltou a estabelecer a necessidade do registo e da publicidade, para evitar os tratados secretos, e a própria Assembleia Geral, em 14 de Dezembro de 1946, adoptou o regulamento complementar para tal efeito.

Tudo isto não invalida que a efectividade prática da referida intenção deixe muito a desejar. A todo o tempo se ouve falar de espionagem seja ela com fins de Estado, militares ou industriais.

A todo o momento os avançados serviços de informação das grandes potências recolhem preciosas informações que analisam e catalogam.. Muitas dessas informações são depois, pelos seus governos, classificadas de secretas.

No meio de toda esta azáfama, qual o papel que é destinado ao cidadão? A pergunta impõe-se já que o segredo

que o Estado estabelece não pode anular os direitos fundamentais dos cidadãos.

A Lei n.°9/91, que regulamenta o Estatuto do Provedor de Justiça, consagra no n.° 2 do seu artigo 12.°, que o dever de cooperação com o Provedor de Justiça cede face ao segredo de Estado. Ou seja, estamos face a um limite ao acesso de informação. Concretizando, um limite ao conhecimento. Um dos lugares comuns em todos os discursos sobre a democracia consiste em afirmar que esta é o governo do «poder visível», ou nas palavras de Norberto Bobbio o governo em público do poder público. Mas a palavra «público» tem dois sentidos, conforme se oponha a privado, ou a secreto, caso em que significa não algo relativo à causa pública ou ao Estado, mas aberto ou visível. Mas os dois sentidos não coincidem: um espectáculo público pode perfeitamente ser um negócio privado e vice-versa. Assim, em nada afecta o carácter público do poder de um soberano autocrático o facto de esse poder ser exercido em circunstâncias de segredo extremo. Um dos princípios fundamentais do Estado constitucional é o da publicidade, em que esta é a regra e o segredo a excepção. Uma excepção que não deve quebrar a validade da regra, uma vez que todas as medidas excepcionais só se justificam quando limitadas no tempo. Cite-se, exemplarmente, Michele Natale, o bispo de Vico, quando em plena Revolução Francesa escrevia no seu Catecismo Republicano que «Todas as obras dos governantes devem ser conhecidas do Povo Soberano, excepto alguma medida de segurança pública, que deverá igualmente ser conhecida depois de passado o perigo». Em 1962, Habermas, ao escrever sobre a transformação do Estado moderno, mostrou a gradual emergência daquilo a que chamava «a esfera privada do público» ou por outras palavras, a importância pública da esfera privada. Já antes dele, Kant, estabeleceu que a publicidade dos actos do poder representa o verdadeiro momento da viragem na transformação do Estado Moderno de Estado absoluto em Estado de direito.

Em toda a problemática que nos envolve, há dois fenómenos diversos, embora estritamente relacionados entre si: o fenómeno do poder oculto ou que se oculta e o fenómeno do poder que oculta, que se encontra escondido, O primeiro inclui o tema clássico do segredo do Estado; o segundo, o tema igualmente clássico da mentira lícita e útil, que remonta nada menos que a Platão.

Face ao exposto, fácil se torna concluir que a expressão segredo do Estado é de tal maneira abrangente que se torna difícil concretizá-la. Um exemplo pode ser dado através do sucedido na Checoslováquia, em Junho de 1968. O Parlamento votou a diminuição do número de segredos do Estado, passando o número de páginas do dossier a ser de 35 enquanto, antes, totalizava nada menos de 400.

O segredo do Estado, ao «esconden> temporariamente algumas matérias, deveria fazê-lo com o intuito de proteger e salvaguardar o Estado e a sociedade. Mas ao fazê-lo está a limitar o acesso à informação, limitando-se por fim, o próprio conhecimento.

A materialidade subjacente a um Estado social de direito, impõe a possibilidade de controlo de qualquer poder, nem que esse controlo seja efectuado por um grupo restrito de cidadãos. O que nunca pode é deixar de haver esse controle ainda que mínimo. É que o segredo de Estado não implica um Estado de segredo.