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II SÉRIE-C — NÚMERO 23

Estamos longe da sociedade do ócio profetizada há alguns anos, em que os seres humanos descansariam e gozariam os frutos do trabalho feito por máquinas. Parece que a sentença do Génesis continua a fazer-se cumprir: «No suor do teu rosto comerás o teu pão» (Gen., 1, 2, 19), a despeito do que o orgulho científico-tecnológico do Homem lhe quer fazer crer.

Pelo contrário tem-se assistido não só a grandes resistências à diminuição do horário de trabalho como, quando se aceita ou defende tal fenómeno, à generalização do part-time, com a inevitável redução do rendimento do trabalho e a concomitante necessidade de o trabalhador se desmultiplicar em vários postos de trabalho, única maneira ' de alcançar um rendimento mínimo de subsistência. Esta também é uma forma de precaridade laboral, não me parecendo ser a via mais correcta para ultrapassar as situações de desemprego. Não é recriando uma sociedade típica do liberalismo oitocentista que caminharemos para um estado de maior justiça social. A resposta a desafios tão prementes como actuais não passa pela desregulamentação selvagem, criando uma falsa sensação de igualdade e equilíbrio.

Há poucos dias um economista do Porto, escrevendo num jornal diário a propósito do Campeonato Mundial de Futebol, comparava a vida a um jogo, fazendo notar que ninguém espera que o árbitro apoie e proteja a equipa mais fraca, colocando em igualdade ambos os conjuntos. Tal sucesso, a acontecer, desvirtuaria, segundo o citado autor, a justiça e imparcialidade que se esperam como garantias de um jogo limpo, propiciador de um espectáculo admirável e digno.

Apesar da beleza literária e do rigor de tal discurso, a verdade é que tal concepção formal do princípio da igualdade, além de não permitida constitucionalmente, representaria um retrocesso formidável de 150 anos na evolução do tecido social, albergando sob a capa neoliberal do primado da vontade a existência de situações em que a formação dessa mesma vontade pela parte contratual mais fraca (leia-se, o trabalhador) estaria gravemente viciada. O Estado Social de Direito apareceu para condicionar e limitar a lei do mais forte nas relações interpessoais, colocando os cidadãos em posição real de igualdade. A vida, por mais artifícios que se utilizem, não é um jogo de futebol em que a parte mais forte, observadas regras mínimas, domina a mais fraca. O Estado-árbitro morreu quando a sociedade sentiu que a sua intervenção não devia ser regida pelo princípio do mínimo, cabo de esquadra e recebedor de impostos, mas pelo do óptimo, com a consagração de importantes atribuições de cariz económico e social.

Voltando ao tema que aqui nos traz hoje, duas vias são geralmente utilizadas no nosso país para a precarização do' vínculo de emprego público. Impedida qualquer fuga aos quadros típicos traçados pelo Decreto-Lei n.° 427/89, de 7 de Dezembro, impondo como meios de estabelecimento de relações pública de emprego a nomeação, o contrato administrativo de provimento e o contrato de trabalho a termo, a Administração tende a recorrer à celebração deste último tipo de contratos ou, mesmo quando a possibilidade do trabalho em causa possuir características de independência é remota, de prestação de serviços.

A celebração de contratos de avença ou tarefa em que a subordinação é mais do que evidente, sujeita os trabalhadores de facto (e também de jure, na medida em que é a realidade que é qualificada juridicamente e não um mero nomen iuris) a circunstancialismos para os quais

a maioria não está devidamente preparada, com importantes consequências a nível fiscal, de segurança social e

assistência na doença, bem como, inevitavelmente, na extrema precaridade da relação. O uso indiscriminado dos contratos a termo, instrumento em si muito positivo ao permitir a criação de postos de trabalho que, posto que efémeros, se destinam ou deviam destinar a realização de funções também efémeras, leva a uma situação de autêntica fraude à lei. Não beneficiando, muito pelo contrário, o trabalhador, ao impedir qualquer projecção de plano de vida senão ao mais curto prazo, a utilização de contratos a termo também não beneficia a Administração, ao impor uma rotatividade grande, com um ciclo de aproveitamento curto (três anos) que não permite um cabal aproveitamento das potencialidades do trabalhador com o entesouramento da experiência adquirida, preferindo a sempre ingente tarefa de formar incessantemente novos trabalhadores para as mesmas funções.

Outro aspecto do problema da precaridade da situação funcional dos empregados públicos está nas formas de mobilidade, quer interdepartamental, quer intergeográfica. Regulada genericamente pelo Decreto-Lei n.° 427/89 atrás citado, a transferência voluntária ou compulsiva, aceite ou não, de úm trabalhador para outro posto de trabalho pode ser, se bem aplicada e dotada das garantias necessárias, um instrumento de valorização pessoal e profissional ímpar, bem como, o que não é de menor importância, um meio de aumentar a eficácia e a rentabilidade da Administração Pública, com uma gestão óptima dos recursos estaduais, que o mesmo é dizer, de todos nós.

No entanto, quando a disciplina normativa desses instrumentos de mobilidade seja escassa ou defeituosa, bem como se não existirem meios adequados de controlo de eventuais abusos ou de má administração, á utilização desses instrumentos pode conduzir a casos por demais gravosos para os interesses dos trabalhadores envolvidos, sem um real incremento do interesse público em causa e, por vezes, em seu prejuízo também.

Refiro a este propósito um caso ocorrido em finais do ano passado com o destacamento compulsivo de médicos especialistas, assistentes eventuais, para hospitais mais carenciados. Se a intenção que motivava tal destacamento era, sem dúvida, nobre, ao procurar garantir a todos os portugueses o acesso à saúde, os meios eram, pelo menos, discutíveis. Os médicos em causa beneficiavam do regime criado pelo Decreto-Lei n.° 128/92, de 4 de Julho, ao abrigo do qual se encontravam numa posição mista e dúbia. Não eram funcionários, pois não tinham um lugar; sendo agentes administrativos, eram partes num contrato administrativo de provimento que se considerava válido até ao seu provimento num lugar e consequente integração na carreira médica. Esse contrato de provimento era, pois, tendencialmente perpétuo, caso o médico em causa nunca fosse opositor a um concurso ou alcançasse colocação. Para a sua colocação previam-se regras muito genéricas de destacamento, precisamente as que se quiseram ver aplicadas no caso descrito. Ora, com tais regras aliadas à não abertura de quaisquer concursos para preenchimento das vagas dos quadros hospitalares, esses médicos arriscavam-se a ser agentes administrativos toda a sua vida, sendo arbitrariamente colocados nos mais diversos locais do País, sem quaisquer garantias e com os inevitáveis reflexos na sua vida profissional, pessoal e familiar. Propôs-se, em recomendação que dirigi ao Senhor Ministro da Saúde de então, a abertura das vagas a concurso e a aplicação, por integração analógica, do regime do Decreto-