1940 II SÉRIE - NÚMERO 62-RC
que irá fazer o Sr. Deputado José Magalhães serão no sentido de identificar, assemelhar os dois processos, já que lhes irá atribuir o mesmo grau de discricionariedade, esquecendo que alguma discricionariedade houve quando uma maioria eleita na Assembleia Constituinte impôs, pretensamente ad aeternum, determinadas baias. Poderia ter imposto outras. Colocou aqui 10 ou 12, mas poderia ter posto 20 ou 30 e estaríamos com esse tipo de dificuldades ainda um pouco mais acrescido. Quem julga da suficiência de uma prática contrária para daí concluir ter havido desuso ou a formação de um costume contra constitutionem é a Assembleia Constituinte e só ela. Só que tem um critério vinculativo a que se submeter que resultou do comportamento e da vontade do próprio povo, o titular último da soberania, do poder político.
O Sr. Deputado Almeida Santos pergunta-me também: "Porquê esta sanha contra este artigo e não quanto a outros?" Sr. Deputado Almeida Santos, não há sanha nenhuma contra este artigo. O problema da caducidade aplica-se a muitos outros artigos da Constituição. De resto, tive oportunidade de dizer que isso vinha a propósito dos afloramentos nos preceitos que concretizavam o princípio socialista-marxista. É o caso, por exemplo, da apropriação colectiva dos principais meios de produção, solos e recursos naturais, de diversos preceitos da Constituição relativos à reforma agrária e em matéria de planificação da economia. Ora, esses preceitos também caducam. O problema assume maior gravidade porque há um artigo que se arroga o direito de explicitar quais são os limites materiais da Constituição e vai para além daqueles que normalmente existem numa sociedade pluralista e democrática. Portanto, utilizando essa técnica, procurou garantir aquilo que em determinada conjuntura política considerou as conquistas da revolução. Isso não significa que não haja razão para não considerar outros artigos dentro da mesma óptica. Isto não é um problema de sanha. Nesta matéria de revisão, porém, é este artigo que representa o ponto fundamental. Se este artigo não existisse muitas das questões que temos vindo a tratar assumiriam um cariz diferente. Portanto, não é por minha vontade que ataco o artigo 290.°, mas, sim, pela própria natureza das coisas.
Em todo o caso, há uma outra questão que gostaria de referir: já vimos que na minha tese a discricionariedade não é necessariamente maior. Pelo contrário, ela é, de algum modo, teoricamente menor, na medida em que aqui a assembleia constituinte limita-se a declarar e nos outros casos é ela que livremente escolhe. Mas é sempre, repito, a assembleia constituinte quem escolhe.
Agora aqui agita-se o espantalho do ditador. Se o ditador dominar uma assembleia constituinte, teremos o mesmo tipo de problema. Há coisas que são insolúveis. Se não houver quem defenda a democracia, a sua estabilidade, a sua manutenção, será um problema insolúvel. A democracia tem de viver das pessoas que a animam em cada dia. Há, porém, uma coisa que, do ponto de vista técnico-jurídico e do ponto de vista da teoria do Estado, V. Exa. terá de compreender: existe a dificuldade de explicar como é que os Estados, os sistemas estaduais e os ordenamentos jurídicos subsistem apesar de algumas mutações revolucionárias que, entretanto, ocorrem. Se não for pela via do tão denegrido costume, será difícil explicar o problema da continuidade, apesar da mutação revolucionária. V. Exa. pode negar o costume, pode dizer que não acredita. No fundo, isto é a repetição, ao invés constitucional, de uma matéria que já na altura das codificações do direito civil se abordou exaltando o voluntarismo da lei e que não penso que tenha tido êxito. Essa discussão levar-nos-ia muito longe. Não penso que o costume seja uma fonte proscrita, nem sequer no nível constitucional. Vale a pena meditar no exemplo da Constituição britânica, onde a democracia parlamentar nasceu. Nos países da Europa continental o costume encontra naturalmente maiores limitações e está condicionado pela abundância da lei escrita ou da norma constitucional escrita. Não é fácil formar-se um comportamento contra legem acompanhado da opinio júris da sua necessidade. Mas por vezes acontece. E o caso do princípio da construção de uma sociedade colectivista que foi maioritariamente recusado.
V. Exa. tem razão quanto a um ponto: estamos aqui a fazer não uma discussão da teoria geral do Estado, não uma discussão da teoria geral do direito constitucional ou mesmo uma discussão académica acerca da melhor maneira de interpretar o artigo 290.°, mas, sim, a tentar encontrar consensos que permitam ultrapassar as dificuldades. Interessa mais conseguir obter, pragamaticamente, resultados que permitam ultrapassar as dificuldades de que nos convencermos necessariamente acerca da bondade das teses que defendemos. Por isso não irei impugnar a posição do Partido Socialista, dizendo que, do meu ponto de vista, a tese da dupla revisão constitucional tem tantas ou, senão, maiores fraquezas do que aquela que defendo. Elas, no fundo, acabam por conduzir a resultados similares. Como é natural não vou enveredar por uma discussão teórica, já que isso não os interessa e é descabido neste contexto. Queria apenas dizer o seguinte: há um propósito extremamente sério, porventura não conseguido, de tentar fazer uma explicação, que parece razoável, que entre em linha de conta com um conjunto de factores vários e que não é usual dentro do conjunto dos constitucionalistas que habitualmente escrevem sobre estas matérias. Isso não significa que necessariamente a communis opinio tenha razão. A communis opinio é muito importante do ponto de vista da hermenêutica jurídica, mas nem sempre resolve todos os problemas, nem sempre acerta...
Para mim o que é efectivamente importante é que se consiga ultrapassar dificuldades, que parecem só ter duas soluções alternativas, qualquer delas muito má: uma solução de tipo revolucionária revogando a Constituição, que todos nós excluímos, e uma solução mais simples, mas certamente hipócrita, que é a de semantizar a Constituição e deixá-la esquecida.
VV. Exas. seguiram o caminho da dupla revisão mitigada, ligeiramente tímida. Nós seguimos um outro caminho, que nos parece mais consentâneo com a envergadura dos problemas a enfrentar. Isto não obsta a que possamos, efectivamente, estar de acordo quanto aos resultados práticos. Há uma concordância prática não da interpretação da Constituição, mas, sim, dos resultados da revisão constitucional, o que me parece ser de sublinhar.
Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, o que lhe falta não é nem a inteligência nem a capacidade de argumentação. O que lhe falta é razão. De resto, estamos de acordo.