110 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 48
xarem; e mesmo em comparação com o muito que poderiam fazer,- aquilo que os particulares hoje fazem, sendo considerável, não é suficiente.
Muitos dos homens ricos de Portugal imo têm a rasgada generosidade e a séria compreensão dos deveres sociais da riqueza que se encontram noutros países e especialmente nas Amerceas. O desaparecimento ou; diminuição do número dos "brasileiros" vai fazer-se sentir neste domínio, onde mareavam pela rasgada benemerência. E não há outro remédio, por muito desagradável que seja, senão obrigar por meio do imposto as fortunas existentes a partilhar dos encargos resultantes do imperativo da solidariedade nacional na assistência aos mais pobres.
Note-se ainda que, por motivos vários, o número de homens desinteressadamente devotados à causa dos necessitados é cada vez menor - sobretudo tendo em vista o aumento da quantidade de obras, a sua diferenciação e especialização e a exigência de um mínimo de educação social e técnica para as dirigir. E êsse facto cria problemas novos que adiante se considerarão ao tratar dos agentes da assistência social.
Associações e fundações privadas e soa tutela
46. Refere-se a base XXXIII da proposta à tutela administrativa a exercer pelos órgãos do Estado sobre as obras particulares para as orientar, com elas cooperar e defender os seus fins dos possíveis desvios dos respectivos dirigentes técnicos ou administrativos.
É função que tem tanto maior utilidade quanto mais precisamente estiverem definidas as linhas do plano do assistência.
Em relação às pessoas colectivas de utilidade pública administrativa local o Código Administrativo, artigos 416.º a 424.º e 429.º, regulou os termos gerais dessa intervenção tutelar, confiada em princípio, por conveniência de desconcentração, aos governadores civis, que a exerceriam de acordo com as instruções superiores.
Estabelece ainda o Código a necessidade de autorização para a constituição de certas classes de associações ou institutos, ou de aprovação para os estatutos respectivos, por duas razões: a primeira, de ordem jurídica, é a de marear o momento em que nasce a pessoa colectiva com a qualificação de utilidade pública, e a segunda, de ordem política, é a de poder assim orientar-se a assistência privada, impedindo que numa localidade, por virtude de rivalidades ou mera emulação entre pessoas, se multipliquem as obras da mesma índole quando faltem completamente noutros sectores de assistência.
A base XVII da proposta, artigo 2.º, preconiza a necessidade de autorização para o exercício da "assistência, beneficência ou caridade" por associações ou fundações, que a base V, artigo 2.º, dispensavelmente e sem rigor procura definir.
Sabido que a "autorização" precede a constituição, ao contrário da e aprovação B, que supõe já realizados os actos preliminares e elaborados os estatutos, é evidente que essa forma do acto administrativo pode convir às associações, mas não às fundações, que apenas devem ser aprovadas.
Não se trata na proposta de definir em que condições se faz a declaração de utilidade pública das pessoas colectivas com fins de assistência e quais os efeitos dessa declaração. No Código Administrativo, artigo 417.º, regulou-se o primeiro ponto quanto às pessoas colectivas de utilidade local (que aproveitem em especial aos habitantes de determinada circunscrição), pelo que resta regular o regime das de utilidade geral.
E não é matéria de menos importância, convindo defini-la até para se ficar sabendo quais os meios competentes para obter a declaração.
Criadas as associações e institutos (que designaremos, por amor de brevidade e usando a linguagem comum, obras de assistência, afastando-nos do sentido dado pela base XXIV, que se refere às obras públicas destinadas a utilização por serviços de assistência) e atribuída a personalidade jurídica, a tutela, nos termos da proposta, deve ter um fito predominantemente orientador.
É de aplaudir tal critério, que oxalá venha a ser convenientemente traduzido na prática. Há no nosso Paia a tendência para converter todas as fiscalizações em vexatórias inquirições ou em incómodas exigências de frequentíssima remessa de papéis que ninguém lê o se acumulam, inúteis, sobre as secretárias de funcionários submersos em tarefas superiores às suas forças.
Do que neste capítulo se carece é de uma orientação técnica esclarecida, paciente, por assim dizer pedagógica, dada no próprio lugar da obra e quanto possível a propósito do seu funcionamento normal por visitadores competentes.
Esta será a tutela que dará alento à iniciativa privada. De contrário desmentir-se-iam pela realização os bons propósitos expressos de dar primacial relevo à acção dos particulares.
As Misericórdias
47. Tratando-se da assistência prestada por particulares através das suas associações ou fundações, merece menção especial a tam portuguesa fórmula das Misericórdias.
Criadas numa época em que estava generalizada em todo o País a agremiação em confrarias, foi como confrarias que nasceram. E receberam, como não podia deixar de ser, a profunda inspiração e o impulso do pensamento e da fé católicas, então constitutivos da própria essência espiritual da Nação.
Propunham-se os confrades praticar a caridade cristã para sua edificação e salvação das suas almas através do exercício das obras de misericórdia, assim espirituais como corporais.
O ardor da fé vencia o egoísmo, supria a própria falta de sentido social, tam frequente nos portugueses. E as confrarias da Misericórdia por todo o País floresceram, reunindo importantes patrimónios em bens imóveis e juntando todos os homens bons que consideravam honroso dever o inscrever-se como irmãos.
Com o liberalismo a desamortização vibrou o primeiro golpe profundo nas Misericórdias, ao impor a forçada conversão em títulos de dívida pública dos bens de raiz. Depois o amortecimento da fé foi esfriando a generosidade dos corações. Tentou-se a seguir a baixa política dos caciques com o instrumento de influência entre o eleitorado ou de propaganda anticlerical que a beneficência das Misericórdias podia constituir. E por fim a depreciação da moeda fez minguar de tal forma o valor dos réditos provenientes dos títulos da dívida e dos capitais mutuados que a acção, já comprometida, das instituições se viu quási anulada. Das confrarias já mal se encontra traço; pensou-se em laicizar de todo algumas casas e usurpou-se o nome de Misericórdia paru obras infiéis ao espírito primitivo. E em muitas delas só com comissões administrativas de nomeação governamental se consegue sustentar-lhes a vida.
O Anuário Estatístico de 1940 informa existirem nesse ano no continente e ilhas 317 Misericórdias com actividade de assistência, que 19 já não puderam exercer. Nessa actividade despenderam ao todo 37:000 contos, números redondos, dos quais 22:000 contos em assistência aos doentes.
As receitas totais das 336 Misericórdias montaram a 64:300 contos1. Dessa totalidade 29:600 contos provie-
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1 Mais do dobro de 1925, conforme se vê do Anuário Estatístico desse ano.