25 DE FEVEREIRO DE 1944 111
ram de rendimentos de bens próprios, 10:800 contos de subsídios do Estado, autoridades e corpos administrativos e apenas 3:600 contos provieram de cotizações e subsídios de particulares!
O problema da restauração das Misericórdias, num papel de destaque na obra nacional da assistência, não pode deixar de ser encarado. São a principal forma de organização da assistência privada, a sua concepção inicial é inspirada pelo melhor espírito, possuem notabilíssimas tradições e são ainda hoje possuidoras de considerável fortuna, pois que os rendimentos de bens próprios, calculando-se produzidos a uma taxa de 3 por cento, correspondem ao capital de 1 milhão de contos, números redondos.
Mas para esse efeito há que estudar o processo de conciliar quanto possível a sua estrutura tradicional com as exigências da moderna assistência social.
O exemplo da Misericórdia do Porto mostra que, sem abandonar a substância da forma primitiva e mantendo, portanto, íntimo contacto com os irmãos, é possível realizar ampla e útil obra actual. Até que ponto essa forma tem de evoluir para que, sem perda do espírito, todas as Misericórdias reassumam a sua gloriosa função?
Obra da piedade individual, nessa restauração há ainda que contar muito com a mentalidade, os sentimentos e a educação dos indivíduos. Não se pode fabricar artificialmente um espírito: quando muito criam-se as condições favoráveis à sua eclosão. Por isso o reformador ou o governante encontram-se aqui perante limitações de facto que avisadamente lhes cumpre verificar com senso das realidades.
O Código Administrativo, no texto de 1936, consagrou o princípio de que «a Santa Casa da Misericórdia da sede do concelho é o órgão central da assistência concelhia, cumprindo-lhe congregar a acção beneficente de todos os estabelecimentos e associações de assistência pública e privada, de acordo com os corpos administrativos e Casas do Povo e em harmonia com as instruções transmitidas pelo governador civil» (artigo 372.º). A comissão revisora chegaram, porém, tantas objecções provenientes em grande parte das próprias Misericórdias, que alegavam não possuir meios para exercer tal missão, que não houve remédio senão, no texto de 1940, substituir o preceito por outro (artigo 433.º) de carácter menos prático.
Parece, porém, a esta Câmara que deve insistir-se no ponto de vista expresso no texto de 1936, procurando-se auxiliar com os recursos necessários as Misericórdias que não possuírem meios para exercerem aquela missão.
A proposta, no artigo 3.º da base V, prevê regime especial para «as Misericórdias fiéis à tradição dos velhos compromissos, sem prejuízo da actualização das suas actividades assistenciais». O mesmo deverá talvez preceituar-se relativamente às Ordens Terceiras, que nalgumas localidades competem em importância com as Misericórdias.
Estas confrarias, Ordens Terceiras e outras corporações religiosas consideram inconveniente a facilidade de remição dos legados pios, por a falta de confiança dos fiéis no rigoroso cumprimento desses legados os inibir de deixar os seus bens a tais corporações.
Nesses termos é de ponderar o preceito proposto na base XXVIII, de modo que a remição se faça apenas em casos de impossibilidade de cumprimento e por decisão da autoridade eclesiástica, a requerimento da corporação interessada.
O papel da família
48. Refere-se a proposta à família em mais de um passo, sempre a fim de sublinhar o papel fundamental que lhe reconhece no largo quadro da assistência social.
Efectivamente nunca será demais insistir em que a família é a célula social por excelência, a primeira das comunidades naturais, e que, por isso, tem, como nenhuma outra, possibilidades de contribuir para a dignificação e a melhoria da condição humana.
A família é, antes de mais nada, um ambiente moral insubstituível na sua função estimulante e reparadora dos trabalhos e das penas dos cônjuges e no amparo oferecido a todos os que dela fazem parte.
O primeiro problema que em qualquer acção social bem orientada tem sempre de ser encarado - não com declamações oratórias, mas com acção eficaz - é o do robustecimento do meio familiar.
A acelerada dissolução das velhas, comunidades locais, onde as famílias estavam radicadas, se conheciam intimamente e comungavam no respeito das mesmas crenças, dos mesmos ritos, das mesmas usanças, das mesmas tradições, dos mesmos preconceitos, originou uma crise que não pode deixar de preocupar os homens de Estado dignos desse nome e de exigir adequadas medidas.
Nas cidades os indivíduos encontram-se desvinculados de tudo ou quási tudo que constituía a forte armadura de uma vida simples e recta. Formam-se ligações de acaso, chocam-se feitios, educações, gostos e tendências de marido e mulher e dos pais com os próprios filhos, surgem de todo o lado tentações e maus exemplos a que é difícil resistir, perde-se a religião, falta uma autoridade social naturalmente respeitável, não há quem preste apoio moral e conselho nos momentos de crise e a tudo isto se vem juntar a habitação triste e insalubre, a doença, as dificuldades económicas, a ausência de honestas distracções.
Muitos casos de necessidade de assistência se filiam numa série de causas encadeadas: a doença da mulher ou do marido a criar as primeiras dificuldades económicas, destas nasce o desconforto do lar, este agrava o estado moral dos cônjuges e suscita frequentes quizílias, o homem aborrece-se e procura a taberna, a mulher desmazela-se e desespera, os filhos procuram a rua - é uma família desfeita, são uns tantos casos individuais de doença, de miséria, de desmoralização que mais tarde surgem.
E a verdade é que, por mais sedutora que momentaneamente apareça aos filhos a liberdade da vadiagem, não tarda que sintam a tristeza e o desconforto da falta dos pais e do seu desentendimento, com todas as consequências daí advindas.
Não são só medidas económicas que remediarão estas tam frequentes situações. Como ficou dito, o serviço social propõe-se agir na família no sentido de retemperar o seu ambiente moral e de chamar os seus membros ao desempenho de um papel activo na melhoria da vida.
E essa será a verdadeira e profícua assistência social à família - para que possa haver uma assistência social da família.
Infelizmente, porém, há muitos casos em que se não pode contar com a família: ou porque se trate de pessoas sem lar (e aumenta o seu número cada vez mais!), ou porque o meio familiar seja de tal modo corrupto que já não reste nenhuma esperança de o regenerar, ou porque os membros da família sejam anormais ou incapazes de assumir um papel de responsabilidade na obra de educação em que sempre se cifra toda a moderna assistência.
Nesses casos a família não pode ser instrumento de activa colaboração com as outras comunidades para resolver as situações a assistir; em muitas ocasiões até há que fugir-lhe e impõe-se tirar-lhe algum elemento são em perigo de contágio moral.