25 DE FEVEREIRO DE 1944 71
Proposta de lei sobre o Estatuto da Assistência Social
1. De harmonia com a determinação constitucional, não excede o ordenamento da presente proposta de lei «as bases gerais do regime jurídico» ou Estatuto da Assistência Social.
A explanação e defesa de alguns dos seus princípios informadores encontra-se já nos relatórios de diplomas, que a urgência de reformas parcelares levou a publicar, e, nomeadamente, nos que precederam os decretos n.ºs 31:666, 31:913, 32:255, 32:613 e 32:651, respectivamente de 22 de Novembro de 1941, 12 de Março, 12 de Setembro e 31 de Dezembro de 1942 e 2 de Fevereiro de 1943.
Para melhor compreensão dos mesmos princípios convém ter presente a verdadeira noção da assistência social e da sua finalidade dentro do quadro das actividades públicas.
O alcance dessa noção depende do que fôr reconhecido às funções do próprio Estado. Num conceito individualista, que nega a existência dos agrupamentos naturais, ou o valor social da sua função, a actividade assistencial será abandonada ao critério dispersivo dos generosos impulsos individuais; num conceito de monismo sociológico ou estatista, que por outro caminho chega à mesma negação do valor dos agrupamentos naturais, atribuindo à sociedade ou ao Estado, sua expressão política, o monopólio de todas as actividades organizadas, a acção assistencial aparece incluída nas funções do Estado sem qualquer participação de actividades particulares.
É bem diversa daqueles conceitos a doutrina; da Constituição Portuguesa que incumbe ao Estado:
a) Definir e fazer respeitar os direitos e garantias das famílias, das autarquias locais e das outras pessoas colectivas, publicas ou privadas (artigo 6.°);
b) Coordenar, impulsionar e dirigir todas as actividades sociais (artigo 6.°, n.° 2.°).
Importa, porém, não confundir as funções realizadoras dos objectivos políticos da própria sociedade com às actividades de «assistência, beneficência ou caridade», a que o texto constitucional reconhece finalidade própria, entre as susceptíveis de tomarem feição corporativa e serem como tais autorizadas, auxiliadas e favorecidas mediante normas especiais (artigos 16.° e 17.° e seu § único).
São estas actividades movidas pêlos mais diversos impulsos da solidariedade humana, desde os que nascem dos vínculos do sangue até aos que se fundam no dever social da assistência; desde a simpatia beneficente nascida da vizinhança até ao preceito moral da caridade cristã. E todos estes impulsos devem conjugar-se na realização de uma assistência social completa e perfeita.
Marcar o lugar que esta deve ocupar no conjunto das actividades públicas e o sentido social do seu exercício, em ordem à maior perfeição da mesma estrutura política, eis, o que interessa, à definição dos seus princípios bacilares.
2. Uma organização perfeita da sociedade política supõe a constituição e funcionamento normal de actividades que assegurem os fins biológicos, económicos e morais indispensáveis ao aperfeiçoamento das pessoas humanas.
Fora, porém, do reino das utopias nunca houve nem poderá existir organização social tam perfeita que possa excluir as deficiências provenientes de:
a) Anormalidades fortuitas da natureza (terramotos, tempestades, epidemias);
b) Males ou vícios generalizados (degenerescências, alcoolismo, prostituição);
c) Insuficiências individuais ou familiares (invalidez, orfandades, abandonos);
d) Imperfeições ou faltas da própria organização suciai ou política (pauperismo).
A intervenção organizada com vista a prevenir ou remediar as consequências resultantes destas anormalidades, males, insuficiências ou imperfeições constitue o terreno próprio da assistência social, e por isso a sua primeira característica é a de ser uma actividade supletiva em relação às demais-actividades fundamentais da estrutura social. Este carácter supletivo pressupõe que o volume das necessidades a que terá de atender crescerá na razão directa da desorganização das actividades sociais e políticas e deminuirá na medida em que estas últimas se empenharem na obra de restauração e melhoria das condições normais da vida colectiva. E desta interpendência de actividades fluem naturalmente as primeiras directrizes da organização da assistência.
Em boa organização social a família deve considerar-se a «fonte de conservação e desenvolvimento da raça, a base primária da educação, da disciplina e harmonia social» (Constituição, artigo 12.°).
Normalmente, todo o homem deve encontrar no quadro familiar e nos recursos do seu trabalho os meios de prover à sua subsistência e ao aperfeiçoamento das suas faculdades.
As deficiências económicas provenientes do desemprego, da doença ou invalidez deverão ainda, em regra, ser cobertas pelas garantias preventivas da previdência, considerada como dever fundamental numa sociedade bem constituída.
Não pode a assistência social ignorar estas normas de boa organização; se as actividades assistenciais soo chamadas a suprir faltas ou deficiências das actividades normais, não devem apresentar-se como panaceia de todas as desventuras ou substituto de todas as demissões, sem perderem ou atraiçoarem a sua primeira característica fundamental de actividades suplementarem.
Mas desta característica decorrem ainda outros princípios informadores do regime jurídico ou do exercício prático da assistência social.
O adjectivo social deve, em verdade, caracterizar toda a orgânica, toda a técnica e todas as formas de exercer a assistência. Ela é social na conjugação dos diversos elementos ou factores chamados a intervir no realização dos seus fins; social, na averiguação, através de inquérito assistencial, das circunstâncias pessoais e familiares de cada necessitado, e do meio em que se enquadra a sua actividade; social, na consideração das repercussões que os vícios ou males individuais poderão trazer à vida colectiva, e na dos reflexos que as desorganizações familiares ou sociais podem ter nos indivíduos; social ainda, na exigência das práticas da solidariedade higiénica ou sanitária, tanto nacional como internacional.
Estas considerações esclarecem os três princípios basilares que informam todo o ordenamento jurídico do Estatuto:
a) A actividade assistencial pertence, em regra, às iniciativas particulares, incumbindo ao Estado e às autarquias, sobretudo, orientar, promover e auxiliar os seus generosos impulsos;
b) Não é em razão do indivíduo isolado, mas principalmente em ordem à família e a outros agrupamentos sociais, que toda a assistência deve orientar-se;
c) E socialmente mais eficiente e economicamente mais útil prevenir os males do que vir a procurar-lhe remédio.
3. Não se ignora a oposição de que pode ser alvo o primeiro princípio, tanto por parte de doutrinas que se apresentam com ar de novidade, como em razão das cir-