80 DIÁRIO DAS SESSÕES - N. 48
paladino esforçado da unidade linguística, defensor estrénuo e vigilante da sua pureza, apreciou a língua como «obra prima do génio «electivo c uma das mais fortes explicações da autonomia e um dos títulos mais legítimos à independência nacional» 1.
É nesse sentido que Guilherme de Humboldt chamava à filologia a ciência da nacionalidade.
Bem merece a nossa língua todo o carinho que lho dispensemos, pois não há outra que a exceda em formosura e riqueza.
Frederico Schlegel considerava o português a mais suave e doce de todas as línguas românicas, a melhor para expressar as delicadas subtilezas afectivas em todas as gradações, desde o prazer mais terno à saudade, à melancolia e tristeza pungente. Frederico Buchholz classificava-a de língua divina; o Conde Platen, ao ler os versos de Camões no original, julgava ouvir música comovedora que parece alar-se da terra em acordes soberbos e por estádios sucessivos se esfuma nas nuvens etéreas do firmamento 2.
Cito estes juízos, dada a autoridade que lhes advém. emitidos por autênticos valores e por quem fala um idioma que não pertence ao grupo linguístico do nosso.
Razões de sobejo justificam o desgosto com que os escritores peritos no manejo da sua língua a vêem tantas vezes poluir-se um formas viciosas, que, adulterando-a, abrem o caminho à degenerescência do gosto e até à corrupção do espírito.
Ocorre-nos neste momento o vibrante grito de alarme em prol da dignidade da língua, lançado na Academia Brasileira de Letras em 1916 pelo autor celebrado do Sertão, que, se hoje vivo fosse, havia de trazer ao atendimento linguístico o seu franco aplauso:
...Já não é somente o vocábulo de boa casta que é renegado pelo barbarismo; é a própria, plástica, a mesma sintaxe de construção robusta que se vai deformando com o arrocho do justilho, efeminando-se com embelecos e postiços.
Nesta ordem de ideas, entendemos - sem desconhecer a razão do asserto do famoso filólogo germânico acima referido: uma língua não é obra fixa (ergon), mas uma actividade constante (energeia)3 - que a fixação de preceitos ortográficos constitue, no entanto, o meio mais seguro e firme para que a linguagem escrita se não corrompa em deformações e extravagâncias de mau gôsto.
É evidente, porém, que a unidade prevista não deve ser de tal modo rígida a não permitir limitadas divergências ortográficas, correspondentes a diferenças prosódicas mais acentuadas existentes na fala comum de Portugal e do Brasil, e a não ter em couta o enriquecimento do respectivo vocabulário, sobretudo do brasileiro, para o qual os falares indígenas têm dado largo contributo e onde ainda hoje persistem formas e expressões de cunho original e até pitoresco, de bom sabor clássico, mas caídas em desuso ou semanticamente alteradas no velho solar lusitano.
Além disso, a vernaculidade da língua escrita há-de fazer-se ressentir na língua oral e até habituar-nos, não apenas a exprimir-nos com maior pureza, mas a pensar com mais vigor, com segurança, com êxito, a «conquistar - como se exprime J. Duhamel- a nossa própria alma».
Os Governos Português e Brasileiro, ao estatuírem como regime ortográfico do idioma comum o que resulta do sistema fixado para a organização do respectivo vocabulário, estabelecido por acordo da Academia das Ciências de Lisboa e da Academia Brasileira de Letras, rendem de maneira inequívoca o devido preito a essas ilustres instituições, às quais se deve já o acordo interacadémico de 30 de Abril de 1931, mandado pôr em execução em Portugal pela portaria n.° 7:117, de 27 de Maio do mesmo ano, e no Brasil pelo decreto n.º 20:108, de 15 de Junho. Representa ele o passo decisivo para a Convenção agora efectivada, sólida armadura jurídica onde tam dedicadamente colaboraram ambos os organismos académicos e muito em especial o Sr. Dr. Júlio Dantas, seu principal obreiro, como o fora igualmente do acordo de 1931, que por isso bem merece o reconhecimento das duas Pátrias -, destinada «a assegurar a defesa, expansão e prestígio da língua portuguesa», no dizer elegante e formoso do texto daquele diploma.
A Câmara concorda plenamente em que tam alevantada missão, a guarda do nobre idioma, do altissonante português, como o definiu Coelho Neto, deva ser confiada à douta Academia, das Ciências de Lisboa e à sua gloriosa congénere do Brasil - a Academia Brasileira de Letras -, como órgãos consultivos permanentes dos seus Governos em matéria ortográfica.
II
Encaremos agora mais de perto a questão no seu transcendente significado político.
Constituindo a língua, pela sua essência, o vínculo firme da comunhão de ideas e afectos, o meio eficaz da compreensão dos povos, o factor decisivo do seu destino individual e social, pode avaliar-se em toda a magnitude e alcance o objectivo da Convenção, saída já do âmbito académico, para se converter num instrumento diplomático internacional, que alicerce em bases indestrutíveis a boa harmonia luso-brasileira.
Seja-nos lícito repetir o que a tal propósito o relator deste parecer esplanou na sessão académica de 12 de Junho de 1941, em homenagem à grande nação irmã:
A intimidade do contacto entre Portugal e o Brasil, duas faces da mesma civilização latina, pioneiros da mesma cultura lanito-cristã - um na velha Europa, outro no novo mundo americano -, a consciência histórica do paralelismo de destinos encontra a representação plena na unidade da língua.
Velar por ela atentamente é também defender a integridade da origem comum: significa salvar um tesouro sagrado para as duas nações, expressão augusta de solidariedade no domínio moral e social, conservar dom de inestimável preço para um concurso inteligente e devotado, ao serviço dos
1 Glossário, p. 8.
2 Vide o artigo do erudito lusófilo Prof. Harri Meier, «Luiz de Camões, Lusíadas, in Geist der Zeil, número de Fevereiro de 1943, pp. 64-65, ao qual preço estas curiosas informações.
3 Citada por M. do Paiva Bolou, Defesa e Ilustração da Língua, Coimbra, 1944, p. 20.
Não se ignora que por mais do uma vez tem sido posta a questão: se a rigidez gramatical não será um estorvo à representação fiel do pensamento; se a imposição de regras apertadas não estabelece discordâncias inconciliáveis, como diz Vossler, «entre o mentar psíquico e o que se expressa idiomàticamente».
Contra tal sujeição se revoltam com frequência os principiantes, os quo gostam de dar nas vistas por suas irreverências e também - por que negá-lo - alguns innovadores de mérito.
Aquele filólogo, porém, mostra a utilidade da disciplina gramatical - a despeito dos seus exageros, condenando formas que à vista de um critério do mera correcção não são de admitir, mas perfeitamente defensáveis e ato de aconselhar para tirar certos o feitos estilísticos-, pois «só se pode determinar linguisticamente o que do ponto de vista- psicológico e artístico possue natureza e valor próprios, quando se sabe que é utilizável em geral, o que H corrente e imprescindível. ... Dêsse modo, a convenção gramatical não implica prejuízo da originalidade do espírito» (Karl Vossler, Filosofia del Lenguaje, Ensayos, Madrid, 1941, pp. 114 e 148).