1022 DIÁRIO DAS SESSÕES - N.º 112
nho da praça pública, vaiados, escarnecidos, reduzidos a deformados esqueletos pela justiça popular.
Depois a carne vai aparecendo e o preço do gado vai subindo, vai subindo, chegando em quatro meses a atingir uma diferença para mais de 60 por cento. E mais subiria se se mantivesse este sistema de autoabastecimento. Só tinha termo quando não houvesse dinheiro ou o lavrador se recusasse a vender as suas espécies pecuárias.
Vejamos, em brevíssimas palavras, como vigorou este sistema de autoabastecimento instituído pelo governador civil. Estou a falar, repito, em face de elementos que reputo verdadeiros, à falta daqueles elementos oficiais que em devido tempo pedi e insisti por que me fossem entregues.
Primeiro é encarregado o referido marchante e negociante de gado, da mais alta categoria financeira no seu meio, do exclusivo de abastecimento de carnes.
A tabela dos preços de venda de carnes ao público determinada pela Junta Nacional dos Produtos Pecuários mantém-se. Por esta tabela os comerciantes de carnes deviam receber a carne ao preço médio de 13$80, para a vender ao público ao preço médio de 15$80.
Havia quatro qualidades de carne:
Lombo e vazio, 265; 1.ª categoria, 22$80; 2.ª categoria, 19$20; 3.ª categoria, 12$.
Para que esta tabela se não cumpra deixa de se fazer fiscalização na cidade do Porto. Certas pessoas, porém, beneficiam do preço da tabela. O comum dos mortais tem carne pelo preço que o talhante lha quer vender. Gostava de ver o que reza nos documentos que pedi. É oportuno repetir: também pertenço à população portuense. Por mim e por muitos outros sei o que se passou. Alguém, com responsabilidade, a quem comuniquei que continuava a não ser abastecido de carne, prontifica-se a providenciar. Recuso-me a ser beneficiado com medidas de excepção e continuo atento à evolução natural deste sistema autárquico.
As funções atribuídas ao opulento comerciante de carnes são transferidas, por despacho do governador, para uma instituição chamada Comissão Distribuidora de Reses Vivas, em que tem influência decisiva, através da sociedade de que é gerente, o comerciante opulento.
Devo acentuar que esta Comissão não se chama grémio e suponho que não tem a mais ligeira fiscalização. Por isso agrada, embora com funções distributivas semelhantes às do grémio. Os nomes muitas vezes é que perturbam o sentimento e a inteligência das pessoas.
Mas como é que se podia cumprir o preço médio de 15$80 da tabela de venda ao público quando a carne passou rapidamente a ser fornecida ao talhante pelo preço médio de 18$90? Não havia opulência que resistisse a tão avultado prejuízo.
O Governo tem conhecimento do que se passa na cidade do Porto, da maneira como foram postergadas as funções da Junta Nacional dos Produtos Pecuários e do Grémio dos Comerciantes de Carnes, que se limitavam a cumprir instruções do Sr. Ministro da Economia; tem ainda conhecimento de que o decreto n.° 35:809 é como se fosse letra morta para a cidade do Porto no que diz respeito ao abastecimento de carnes. E deixa um organismo de coordenação económica e um organismo corporativo inteiramente ao sabor iuconscien'6 da justiça popular, apesar de os seus crimes nefandos consistirem em terem procurado obedecer à lei e às normas de conduta que pelo respectivo Ministério lhes eram dadas.
O governador, por seu lado, vê-se também desamparado. Assumiu uma atitude que lhe foi imposta pelas circunstâncias políticas. E o governador e o Governo, mesmo o Ministro da Economia, também têm de fazer política. A administração sem política é uma administração sem alma, e quando falta a alma passa-se insensivelmente a cadáver.
É nestas condições que o governador continua a assumir a responsabilidade de se substituir ao Ministro, que desconhece a existência da cidade do Porto, e fixa uma tabela de preços de carne em que desaparece a carne de 3.ª
A tabela é a seguinte: lombo, 28$; 1.ª categoria 264; 2.ª categoria, 22$80.
A carne de 2.ª numa rês de 225 quilogramas apenas abrange 37 quilogramas. Esta tabela também não pode ser cumprida, porque o preço do gado continua a subir, a ponto de atingir o preço de 360$ por arroba de carne limpa.
A fiscalização continua morta. E o consumidor tem de pagar carne a 36$ o quilograma. As classes mais desafortunadas olham para a carne com vontade de comer.
Entretanto na cidade de Lisboa começa-se a abastecer o consumidor com carne a 10$, 16$, 20$, 24$ e 28$ o quilograma, através da Junta Nacional dos Produtos Pecuários e do Grémio dos Comerciantes de Carnes.
Nas duas principais cidades do País vigoram dois sistemas de abastecimento.
Numa manda o Governo, noutra manda um delegado do Governo.
Numa obedece-se à disciplina económica, noutra põe-se de parte a mesma disciplina. O decreto-lei n.° 35:809 continua a ser letra morta na cidade do Porto.
O consumidor portuense em condições económicas mais precárias não se apercebe de que só tem carne de 2.ª categoria a preço muito mais caro do que a fornecida de 3.ª, 4.ª e até da mesma categoria ao consumidor de Lisboa.
Não se apercebe de que o preço da carne de gado bovino foi sempre mais baixo no Porto do que em Lisboa.
O Porto continua a ter carne acessível só às classes abastadas. Todavia parece que a outra classe também rejubila.
Fala-se muito em consumidor e não se sabe distinguir o consumidor farto de meios e o consumidor pobre de meios.
Chega-se até a ver o consumidor farto de meios a falar em nome do "homem da rua", usando de um mandato que, embora lhe apeteça, nunca lhe foi confiado.
A economia do lavrador do Norte sai fortemente afectada com esta política especulativa do preço da carne.
A economia do comerciante de carnes, se fosse cumprida a tabela, acabava por desaparecer.
Só nada sofria a economia do consumidor farto, porque a sua resistência foi conquistada nos embates laureados e frutuosos do tempo de guerra, e também nada sofria a economia do consumidor pobre, porque se limitava à sua triste sorte de continuar com vontade de comer.
É neste estado de coisas, nesta desintegração económica, em que se não cumpre uma disciplina que se proclama e se expressa na lei, por má compreensão ou por a lei não corresponder às realidades, que o Sr. engenheiro Daniel Barbosa toma conta da pasta da Economia.
E pouco tempo depois a cidade do Porto está novamente integrada na disciplina económica orientada pelo Governo. A disciplina da Junta Nacional dos Produtos Pecuários e a disciplina do Grémio dos Comerciantes de Carnes ressuscitaram.
O Ministro da Economia repôs as coisas no seu devido lugar. Justiça lhe seja feita. Volta a haver carne para as classes menos abastadas.
Acusou-se a Junta Nacional dos Produtos Pecuários, acusou-se ainda o Grémio dos Comerciantes de Carnes. Espero que o Sr. Ministro da Economia não coarcte a defesa destes organismos e proclame a quem pertencem as responsabilidades da situação criada.