52-(44)
II SÉRIE-B - NÚMERO 10
análises na Clínica. Nesse mesmo dia à tarde o Dr. Benjamim deu-me conhecimaento de que não seria possível operar o meu pai porque o mesmo se apresentava febril (tinha 38,2° de temperatura) e que estaria a fazer o princípio de uma pneumonia, mas que não havia motivo de alarme porque tudo tinha sido detectado a tempo. Ficaria então a operação adiada para segunda-feira, dia 16. No fim de semana esteve sempre o meu pai muito bem disposto, tendo a febre desaparecido. Na segunda-feira à tarde, quando o fui visitar, a minha mãe (que esteve sempre na Clínica desde o dia do internamento do marido até à hora da sua morte) disse-me que a Dr.a Leonor (anestesista) lhe dissera que a operação passaria para o dia seguinte, terça--feira, uma vez que tudo estava muito fresco. Nunca houve uma palavra de contrariedade da nossa parte, uma vez que toda a família desejava ao seu ente querido a sua mais rápida recuperação. Nesse mesmo dia à tarde [que podem testemunhar duas enfermeiras de quem desconheço o nome, mas uma delas falou muito connosco, porque as minhas duas filhas estavam nesses momentos a chupar doces que com muito amor e que seria a última das guloseimas que o avô lhes oferecera (dizendo-nos então a Sr." Enfermeira que, devido aos doces, ela sofria agora dos dentes e que tinha um abcesso)], o meu pai encontrava-se sentado na cama a fazer ginástica aos braços (o que prova que o mesmo se encontrava bem). Na terça-feira, dia da operação, cerca das 17 horas, quando fui ao seu quarto, o meu pai já se encontrava sob o efeito de sedativos. Voltei mais tarde, cerca das 21 horas, e permaneci no quarto juntamente com a minha mãe, meu marido e minha sogra, até à chegada do meu pai da sala de operações, que ocorreu cerca das 21 horas e 40 minutos, tendo o mesmo vindo acompanhado por duas enfermeiras e uma empregada de limpeza, as quais nos solicitaram a saída do quarto. Ficámos nós os quatro num pequeno halllque fica mesmo em frente ao quarto. Passou de seguida o médico ortopedista que operara o meu pai, tendo este dito à família presente que tudo correra muito bem e que o paciente passaria com certeza o Natal no seio da sua família, não tendo sequer entrado no quarto (desconhecia eu que era normal este procedimento). Poucos instantes após passa a Dr.* Leonor (anestesista), que nem sequer teve a amabilidade de dirigir a palavra aos familiares (com a médica sucedeu o mesmo, nem sequer entrou no quarto do meu pai), tendo descido de imediato as escadas e ao fundo destas balbuciou «boa noite, ainda cá volto». O meu querido pai esteve no quarto apenas e sempre acompanhado por uma criada de limpeza (assim como nós os quatro familiares, que nos mantivemos presentes até ao último suspiro); a enfermeira de serviço entrava e saía constantemente. Foram injectados o líquido de duas seringas, a primeira através da «torneira» cuja agulha estava injectada no seu braço esquerdo [(tendo a empregada de limpeza dito à enfermeira: «ela voltou, para trás») (deduzi eu que seria o líquido injectado que estava a subir para o balão do soro)] e depois a outra directamente no balão do soro. Uma nota importantíssima foi o facto de o soro nunca ter corrido, desde a sua entrada no quarto até à hora da sua morte. Durante a sua curta estada na cama, após a operação, o meu pai fez um ligeiro movimento do braço esquerdo, ao qual a empregada de limpeza lhe disse suavemente: «Esteja quietinho, Sr. Manuel.»
E logo de seguida a minha mãe perguntou: «Ele está a ouvir?» Tendo a mesma empregada respondido: «Não, não está.» Uma outra nota não menos importante foi o facto de a sua respiração ser muito aflitiva, mas com o passar do tempo parecia-nos que estava a normalizar (nós os quatro familiares, que não temos qualquer conhecimento de medicina), até que às 22 horas e 50 minutos o meu falecido pai suspirou e parou completamente a sua respiração, tendo sido então que a enfermeira viu o seu pulso e correu a tocar o alarme. Surge novo suspiro, era então o seu pobre coração a terminar a sua triste vida. Aparece então a enfermeira--chefe (de nome Catarina), à qual perguntei: «Onde estava a senhora?» «Estava a fazer cartões de boas--festas.», responde-me.
A mesma enfermeira-chefe exclamava: «A médica? O médico?»
E ainda a mesma enfermeira perguntou-me: «A senhora sabe onde há uma festa?» Respondi-lhe: «Penso que no Çine-Teatro.» Perguntou-me novamente: «A senhora tem carro? A médica está num jantar.»
Saímos correndo, procurando numa cidade praticamente despovoada, sendo a nossa única pista o carro do médico ortopedista (que eu conhecia, mas por triste coincidência o médico tinha emprestado o seu carro nesse preciso dia, o qual encontrámos por duas vezes a ser conduzido por um indivíduo que aparentava cerca de 40 anos e que tinha bigode) e uma festa de que desconhecíamos o local. Ao passar na Rua de Everard, reparei que um vereador saída de um portão. O meu marido parou o carro e saímos correndo, quando perguntei: «Sr. Vereador, é aqui a festa?» O mesmo, apenas me diasse: «O que se passa?»
Entrei correndo e disse em voz alta: «Onde está a Dr.a Leonor?» Estava então um coro a catar. O meu marido, entrando pela sala, conseguiu localizar a tal doutora ao mesmo tempo que alguém dizia ao micro: «Quem é a doutora Leonor Pires?»
A doutora recusou-se a entrar no nosso carro (que estava mesmo defronte do Pic-Nic), preferindo ir no seu, que se encontrava estacionado (em frente à Sapataria Rui, junto ao Café Noite-Sol). Deixei o meu marido na Clínica, indo eu novamente a casa do médico ortopedista, o qual ainda não se encontrava em casa. Regressei de imediato à Clínica e, para meu grande espanto, a doutora anestesista já não se encontrava presente, apenas tinha verificado a morte do meu pai. E, para minha maior revolta, nem sequer desligou o oxigénio nem retirou o soro (se em vida não o ajudou, será que o soro o iria ajudar na sua nova vida que agora principiava?). Mas felizmente a Dr.a Leonor teve oportunidade de dizer algumas amáveis palavras de conforto à viúva: «Isto já era de esperar, porque ele era cardíaco.»
Deixo aqui um ponto de reflexão para todos vós: o meu pai, que até então desconhecíamos que era cardíaco (será que o era?), foi sujeito a uma intervenção cirúrgica, sendo imediatamente abandonado pela médica anestesista porque esta tinha um jantar inadiável. Ficou então o referido paciente «entregue» às mãos de Deus, porque dos terrestres não teve qualquer ajuda. Não seria preferível adiar a operação para o dia seguinte? Ou seria que a doutora teria também nos dias imediatos compromissos inadiáveis?
Um ponto que ainda não mencionei, mas que não pode deixar de o ser, foi o fato de o telefone estar desligado.