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II SÉRIE — NÚMERO 15
No entanto, creio que não pode deixar de sublinhar--se o tom com que o fez e o conteúdo dos argumentos que aqui expendeu, que não podem deixar de merecer algum reparo. Isto é: se houve tom que imperasse no debate na generalidade foi o da preocupação, preocupação essa pela degradação das diversas peças do sistema — o relatório da própria 1." Comissão, aprovado por unanimidade, sublinha as componentes dessa degradação —, que não é um fenómeno original português, mas tem as nossas causas próprias.
O relatório procura fazê-lo no tom mais desapaixonado que possível foi, isto é, sem entrar em quesüias ou querelas sobre a história recente da justiça portuguesa e sobre as responsabilidades partidárias nos últimos anos, uma vez que o PSD tem tido o recorde de titularidade da pasta nessa esfera e a passagem do outro partido citado foi episódica.
Em todo o caso, o Governo não trouxe agora o mesmo tom à análise das causas da degradação do sistema.
Creio que há um ponto que talvez tenha sido possível firmar e isso já terá valido a pena. Esse ponto é o pranto sobre as finanças da justiça. Isto é, tem sido típico por parte de diversos ministros da Justiça —e o Sr. Ministro em funções não estará isento dessa pecha— o grande, grande pranto sobre a penúria de recursos lá fora e grande, grande satisfação pelo carácter dos recursos cá dentro. E entre este lá fora e cá dentro anda o coração ministerial: lá fora propaganda no sentido de que estamos mais dinâmicos do que nunca, cá dentro, Srs. Deputados, as verbas são suficientes. Há alguma jactância para efeitos internos que é negativa.
Creio que se há alguma contradição — isto, devolvendo uma observação que há pouco foi formulada por parte da minha bancada—, ela existe por parte do Governo. Foi por isso que canalizámos para o relatório da 1." Comissão aquele quadrozinho sobre os recursos públicos afectados à justiça, que é inédito e, se calhar, até incompleto, mas que, enfim, é uma primeira tentativa que os diversos tipos de recursos canalizados para a justiça dão com carácter agregado, sem os quais ela teria entrado em colapso há muito mais tempo.
Porém, não é possível — e aqui creio que o Sr. Ministro da Justiça não tem razão — que, no exterior, o Sr. Ministro se queixe da maior penúria, como se verificou, por exemplo, num despacho que publicou no Diário da República, n.° 142, de 24 de Junho de 1986, em que referia o caso português como um caso que ultrapassa as barreiras do imaginável e do consen-tível, e que venha aqui, na Assembleia da República, gabar-se dos maiores aumentos de sempre, dizendo que são satisfatórios.
É evidente que eu deveria ter entendido isto com «um grão de sal», como dizendo «são satisfatórios face à penúria». Porém, a verdade é que eles nos são apresentados como colossais e até se chega a dizer que o Orçamento tem um PIDDAC de 3,5 milhões de contos, o que é uma coisa sensacional, quando, infelizmente, sabemos que não é assim. Esses 3,5 milhões de contos são para colmatar o enormíssimo «buraco» que é o PIDDAC/86, a situação de degradação terrível em que se encontra o parque judiciário e a situação de não PIDDAC que caracterizou a Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, para mal de todos nós, especialmente dos presos, e outros aspectos negativos e rombudos da execução orçamental de 1986, que é francamente desas-
trosa. Ora, isto prova-se a todas as luzes e nem sofre contestação: basta ver os elementos que nos foram fornecidos pelo próprio Ministério e o retrato da situação que nos foi traçado pelos directores-gerais.
Portanto, creio que se há um discurso um pouco duplo — triste lá fora e contente cá dentro —, esse é o do Governo. Registámos a afirmação de que as verbas destinadas à Direcção-Geral dos Serviços Prisionais e à Polícia Judiciária em matéria de manutenção e funcionamento são suficientes. Portanto, Sr. Ministro, é uma questão de esperar! Nós também vamos esperar atentamente e logo veremos quando é que vem pedido o primeiro reforço.
O terceiro aspecto que o discurso governamental omite é a questão do planeamento de reformas que, em nossa opinião, tem bagueado e tem sido francamente lamentável. Creio que, por vezes, a resposta do Ministro da Justiça quanto a essa matéria é a tradução do discurso do Sr. Ministro Charles Hernu, em França, só que tradutore traditore sem aquilo que são cautelas do respectivo discurso, isto é, não culpabilizar a magistratura, não culpabilizar o parlamento respectivo e confessar francamente a falta de dinheiro.
A minha última observação geral é a de que temos assistido a uma demarche que é particularmente grave em termos políticos e que é a tentativa de transferência de responsabilidades. O despacho que citei de 24 de Junho de 1986 é um exemplo particularmente fri-sante nesta matéria quando, por um lado, procura enjeitar as responsabilidades que o Ministério da Justiça tem no que diz respeito ao bom funcionamento da máquina judiciária, quando assenta todo ele numa análise de recessão dos meios financeiros que o Ministério da Justiça tem e, por outro lado, não salvaguarda sequer o esforço que os magistrados portugueses têm feito para combater o caos do sistema, devolvendo críticas em três áreas: a comunicação social, que, ao que parece, seria completamente incapaz de perceber os problemas do Ministro da Justiça; a opinião pública, que, com razão, se queixa, mas, ao que parece, o Sr. Ministro da Justiça entende que não é, e, finalmente, a Assembleia da República, que é a terceira vítima ou o terceiro responsável da situação criada no discurso do Sr. Ministro.
A Assembleia aparece como acusada de ter mecanismos de aprovação que não são dotados de assinalável celeridade, o que é uma queixa concreta perfeitamente infundamentada quando aplicada, por exemplo, à revisão da organização judiciária.
A Assembleia da República não reviu a organização judiciária porque o Governo não apresentou, em tempo, os estudos preparatórios e a proposta de lei respectiva. Esta é a resposta e a explicação cabal pura e simples. No entanto, o Diário da República ostenta um despacho em que se diz precisamente o contrário e em que se insinua que os culpados do grande atraso da reforma da organização judiciária somos nós, os deputados da Assembleia da República. Ora, creio que este discurso deixa de lado as causas reais da crise do sistema! A Assembleia da República não pode suprir a falta de dinâmica de formas legislativas nem esta forma de legiferar, que não acautela, por exemplo, a entrada em vigor do Código de Processo Penal. O máximo que podíamos fazer era aquilo que foi feito na lei de autorização legislativa que aqui foi aprovada em Julho deste ano. Mas não se pode fazer, pois está nas mãos do Governo, que, por alguma razão, é responsável.